Sinopse: Não há nenhum outro cenário em que a erosão mundial da democracia, turbinada pelas mídias sociais e por campanhas de desinformação, seja mais dolorosamente evidente que no regime autoritário do presidente filipino Rodrigo Duterte. A jornalista Maria Ressa, que foi uma importante repórter investigativa da CNN no sudeste asiático, coloca as ferramentas da imprensa livre – e sua própria liberdade – em risco para defender a verdade e a democracia. “Mil Cortes” acompanha Maria enquanto o Rappler, site noticioso que ela criou, é ameaçado pelo governo por cobrir a guerra às drogas.
Direção: Ramona S. Diaz
Título Original: A Thousand Cuts (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 38min
País: Filipinas | EUA
Qual o Próximo Passo?
“Mil Cortes“, com seu conteúdo e falas avassaladoras, impressiona em sua exibição dentro da mostra competitiva de longas-metragens internacional no Festival É Tudo Verdade 2021. Porém, pense nessa situação e veja se não te lembra algum lugar bem menos distante que as Filipinas.
Um candidato ao governo do país se destaca por seu discurso de ódio. Verborrágico, primando pela falta de decoro e princípios básicos de civilidade, ele promove uma política genocida. Acredita na morte como solução. Encontra em uma parcela da sociedade que deseja manter seus privilégios econômicos um aliado que os faz relevar a promoção do fascismo. Em outra parcela, a camada mais popular que está cansada da situação de instabilidade que os deixa sempre à beira do caos, aposta nele como uma esperança quase messiânica de dias melhores – o que os faz relevar a promessa de assassinato estatal.
Isso já seria assustador se o filme dirigido por Ramona S. Diaz não adicionasse o componente tecnológico. Uma estrutura de desinformação que avança sobre os meios de comunicação alternativos. Milícias digitais promovem mentiras, usam cortinas de fumaça sempre que uma movimentação não é bem recebida. Vira o jogo para si dizendo que os outros que promovem ódio e intolerância. Viu um pouquinho de Brasil iá iá também?
Pois é, “Mil Cortes” nos mostra um dos mais bem-sucedidos exemplos de ascensão democrática de líderes desta natureza. Se há algo que difere Rodrigo R. Duterte de outros mais próximos de nós é que a base inicial do discurso foi a “guerra às drogas” (e não há como não se lembrar do meme que, anualmente, parabeniza as drogas por mais um período de vitória nesta guerra). Aqui já se tentou avançar sob a alegação de crime organizado – no Rio de Janeiro, por sinal, ainda é um ótica muito utilizada (vide Wilson Witzel e sua promessa de atirar na cabecinha). Porém, o Brasil se enfiou em um atoleiro diferente em relação às Filipinas, porém igual a outros momentos de sua história sob a mesma desculpa: contra a corrupção (para os mais esclarecidos e articulados) e contra o comunismo (para os adeptos de teorias conspiratórias).
Em relação à desinformação e à luta de Maria Ressa, jornalista do veículo Rappler, o documentário dialoga diretamente com “O Dissidente“, em que Bryan Fogler traz a situação da Arábia Saudita. Todavia, ao contrário de Jamal Khashoggi, vítima que surge na outra obra apenas em imagens de arquivo, aqui a profissional tem tempo de tela e se expressa diretamente para o olhar da cineasta. Ou seja, uma oportunidade de reflexão maior. Ressa, então, traz uma sentença muito interessante: a de que a imprensa tradicional está cega demais para compreender que está morrendo. E se transforma no objeto de perseguição do governo.
Confesso que a dimensão de discursos – que transitam entre o imprevisível e o manipulado – hoje me assusta. Quem acompanha nossas críticas sabe nosso posicionamento em relação ao poder constituído no Brasil. Por vezes, há medo em relação ao alcance que essa oposição – feita sem saber para quem chegará. A responsável pela Rappler confirma que o receio deve existir. Rodrigo Duterte, eleito em 2016 o Presidente das Filipinas (uma nação difícil de ser comandada, com seus mais de cem milhões de habitantes distribuídos por milhares de ilhas), articulou bem o processo que agora desemboca na perseguição aos seus discordantes. “Mil Cortes” consegue, sem a engessada linearidade, trazer aspectos que torna essa figura tão midiática. Entre uma apresentação das Mocha Girls e falas de candidatos a vagas no Poder Legislativos que são verdadeiros fantoches zambellianos, ele promove preconceito, discriminação, racismo e ódio – com todas as letras. E com muito orgulho.
A morte como política de Estado foi implementada por lá em um silencioso genocídio. Quase quatro mil assassinatos nos primeiros dias de governo – todos, de acordo com as autoridades – de pessoas vinculadas ao tráfico de drogas. Aqui o líder do país preferiu a Manopla do Infinito versão Thanos, bem mais eficiente mas totalmente aleatória. Mesmo assim, entre os 350 mil mortos (e contando), a grande maioria é de representante do povo pobre e trabalhador deste país. Se já não bastasse as semelhanças apresentadas, Diaz ainda nos mostra como a família Duterte aparentemente enriqueceu dentro da política. Por fim, a longa introdução da música “A Thousand Cuts“, cantada pela rapper filipino-americano Ruby Ibarra ganha a tela trazendo ainda mais o senso de urgência que o filme nos provoca.
Fossem outros tempos, quando “Mil Cortes” chegasse ao nosso conhecimento, a história das Filipinas já teria andando. Hoje podemos acompanhar em tempo real a destruição de todas as sociedades do mundo. E nada podemos fazer. São tantos problemas, dos mais variados aspectos, espalhados por tantos territórios, que uma integração é impossível. O drama de lá acaba sendo apenas um exemplo para cá. Ou um spoiler. A sensação é de que assistimos ao que nos espera. Ao próximo passo.
Veja o Trailer:
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