Sinopse: Em 2011, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) entraram em diferentes favelas do Rio de Janeiro para diminuir a criminalidade. Este documentário visita o Morro dos Prazeres e retrata a convivência na comunidade.
Direção: Maria Augusta Ramos
Título Original: Morro dos Prazeres (2013)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 30min
País: Brasil | Holanda
Paz Sem Voz
Seguindo com a retrospectiva da carreira de Maria Augusta Ramos, em uma parceria celebrado com a Vitrine Filmes, a Netflix disponibiliza esta semana mais dois documentários da cineasta em seu catálogo. Filmado em 2012 e lançado no ano seguinte, “Morro dos Prazeres” (três prêmios no Festival de Brasília de 2013) nos coloca nas transformações recentes da cidade que, mesmo algumas décadas sem o prestígio de ser a capital federal, acaba se tornando boa parte de um espelho de Brasil. Quando as coisas dão errado, parece que no Rio de Janeiro dá errado demais. Quando (parece que) dão certo, a euforia típica de um território marcado pela forma inconsequente como explora a si dá uma dimensão maior de certas situações.
Um caldeirão que tinha tudo para entornar quando os principais eventos esportivos do planeta agendaram suas edições para a cidade. Após os Jogos Pan-Americanos de 2007 (que mencionamos na crítica de “Justiça” afetar pouco a relação da população com alguns espaços), a final da Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 criaram uma demanda para maquiar a forma como o Estado escolhe estar ausente ou se apresentar em sua forma mais violenta e opressora em um cinturão do município. Enquanto isso a mídia hegemônica errava vez em sempre, desde a compra da ideia de que seria positiva a chegada de um núcleo de resistência ao tráfico com toques de auto-organização da comunidade (e que hoje chamamos apenas de milícias) – até a ideia de nomear Poder Paralelo esses territórios no qual direitos fundamentais eram menos garantidos por força de obstáculos.
Ao retomar este ponto, não poderíamos deixar de mencionar a garantismo penal, também objeto da crítica de “Juízo” (2007). Assusta um pouco saber o posicionamento de quem, no início do século XXI, defendia a presunção de inocência como premissa absoluta e o encarceramento como última medida estatal. Mas, sigamos. Ou não, já que o momento que a diretora registra em “Morro dos Prazeres” é parte desta sensação criada pela classe média de que algo estava sendo feito. Maria Augusta até usa brevemente uma nova cena de julgamento, envolvendo uma moça acusada de tráfico, mas aqui ela é mais contemplativa. Parece adentrar um terreno que ninguém sabe o que se tornaria a partir da política implementada pelo governo do Rio de Janeiro, na figura de Sérgio Cabral e José Mariano Beltrame.
No meio deste olhar que se desloca entre jovens daquela comunidade e os novos soldados designados para a ocupação “pacífica”, há uma aura frágil de estabelecimento do poder institucionalizado. Isso porque se mantém em boa parte a vigília opressora, a leitura social racista e não se desconstrói os conceitos envolvendo a constituição daqueles espaços. Com orgulho já fui chamado de esquerdista por “me preocupar demais” com estas questões aqui na Apostila de Cinema – infelizmente, no meio de tanta produção nacional de qualidade, o ódio se deu em um texto sobre “Uma Skatista Radical” (2021). Porém, é impossível não registrar os símbolos que a própria sociedade no qual o documentário está inserido evoca.
O primeiro ocorre logo na sequência inicial. Alguns meninos brincam de “polícia e ladrão” e já inserem nesta atividade a lógica corruptiva dos agentes da lei. O esculacho, o arrego e a insurgência dos trabalhadores do tráfico quando gira a roda da vulnerabilidade. Na primeira vez em que os PMs ganham rosto e voz, eles reproduzem a reclamação típica de quem não conhece aquele espaço. Ao mesmo tempo que as UPPs celebravam a “opção” pela não-violência, seus responsáveis reclamavam que os moradores não “colaboram”, em um questionamento acerca do denuncismo. Serão muitas aspas no texto porque todas essas expressões merecem longos parágrafos de problematização – o que não há como ocorrer em uma resenha curta.
Hoje é quase unânime os erros cometidos pela forma como o Estado se implementou nas comunidades vulneráveis do Rio de Janeiro – até mesmo para os punitivistas, que gostam de dizer que as unidades “espalharam a bandidagem para o interior do Rio”, como se antes disso os sistemas judiciário e carcerário fossem exemplares em suas missões de reprimir e ressocializar. Ao ignorar os aspectos culturais e as particularidades daqueles territórios, as instituições se integralizaram da forma que sempre ousaram fazer: pela força, pela intimidação. O conceito “esquerdista” (na verdade, humanista) de que as autoridades devem investir em inteligência para além da máquina opressora se tornou cultura hippie na terra de Cabral.
Sendo assim, por mais que “Morro dos Prazeres” ainda se coloque como uma obra que quer entender o que se passa, os indícios de que parecia tudo errado estão ali. A diretora ainda encontra espaço para dialogar audiovisualmente com suas criações e com a historiografia do Cinema Brasileiro. Quando dois adolescentes soltam pipa em cima de uma laje, como se tivessem o Rio de Janeiro nas mãos, quem assiste em perspectiva os filmes da realizadora lembra de imediato da abordagem humanizada de Geraldo Prado em “Justiça”, afirmando que “ninguém solta pipa sozinho”. Já a sequência em que uma senhora com dificuldade de locomoção recebe atendimento é ilustrada pelos personagens cantando “A Felicidade”, música de Tom Jobim presente na trilha sonora de “Orfeu Negro” (1959).
Já tivemos a oportunidade de revistar esta outra obra e tratar da maneira exótica como o olhar da produção da época se debruçava sobre as comunidades nos morros cariocas. Maria Augusta Ramos, mais de cinquenta anos depois, é resultado de um questionamento crítico sobre a função das artes na sociedade – e não há como convencer os comentaristas da Apostila de que há “só diversão” por trás de tudo isso. É melhor deixar eles acreditarem que a UPP pacificou, que a “bandidagem fugiu para o interior”, que grande parte da solução não passa pela legalização do uso e comércio de entorpecentes, de que teve Copa e foi um sucesso. Uma realidade paralela substituída por um debate armamentista que nos traz a esse 2021 utópico.
A diminuição da violência foi um fenômeno socioeconômico. Ela ocorre quando há mais emprego, melhor renda, poder aquisitivo da população, perspectiva dos mais jovens em relação à educação. Não há como fugir disso, sua margem de lucro precisa cair para que o bem estar social evite aquele desagradável arrastão que levou seu celular novinho, que você ainda paga as parcelas. Em 2012, época das filmagens, o longa-metragem ainda encontrava uma frente de pensamento dentro da própria Polícia Militar mais humanizada e, de fato, aplicando uma premissa menos violenta. Há esperança em toda parte e a corporação, com toda sua complexidade, também estabelece sua resistência.
Porém, passada quase uma década, a sensação do morador do Rio de Janeiro é de que tudo virou pó. Um pó diferente, não aquele usado como desculpa para a política de segurança pública genocida. Um pó sobre o futuro, como se vivêssemos no meio de uma neblina, caminhando devagar porque sabemos que há um abismo na nossa frente e que nos levará a qualquer momento.
Enquanto estilo, há quem critique a forma como Maria Augusta Ramos media as imagens, principalmente na condução dos jovens, uma proposta de ficcionalização. O resultado final pode criar uma estilização que soa exagerada, mas na minha opinião é apenas o reflexo de quem criou a expectativa sobre um novo trabalho da diretora. Depois de duas obras que primavam pela crueza, ela entrega aqui um documentário coerente com as armas que tinha. Somente após seu lançamento as informações que colhemos hoje seriam acessadas e, principalmente, a capacidade de produção de conteúdo de uma geração movida a smartphones possibilitariam um discurso mais direto e espontâneo.
Mesmo que na qualidade técnica e na montagem que gera a imersão “Morro dos Prazeres” seja extremamente atual, a tecnologia e a sociedade carioca tornaram seus registros históricos com uma brevidade incomum. Ao trazer para perto o conhecimento sobre o sistema processual nos outros textos, talvez tenha deixado de identificar uma característica perene aos filmes da diretora. Eles soam como portas de entrada para debates que objetivam entender gêneses de problemas. Estão longe de resolvê-los – o que deixa a sensação de que fomos derrotados. A aposentadoria ou afastamento de alguns personagens de seus filmes podem ser indícios do quão difícil é respeitar a condição humana, cada vez mais esquecida entre números e cifras.
Veja o Trailer: