A Mostra Outro Rio se junta a outras iniciativas como o Visões Periféricas, que já ocorre há 14 anos e à Mostra Zona Norte, que estreou esse ano com iniciativa do Ponto Cine, espaço cultural reconhecido na Zona Norte da cidade do Rio, para mostrar outros Rios vividos dentro de um Estado que insiste em vender para fora uma imagem idílica que em nada combina com seu território.
É um espaço em conflito e derivado dos mesmos que podemos perceber em cada um dos filmes. As abordagens que passam pela Zona Norte, Zona Oeste e pela Baixada ampliam o olhar do espectador e enfatizam os problemas estruturais de um espaço que por muito tempo foi conhecido como capital de um Império.
Apesar de não o vivermos mais, há ainda no Estado do Rio um ar de província e uma desigualdade que é sentida cotidianamente por aqueles que precisam atravessar esses espaços para trabalhar e, assim, vivem verdadeiramente o que o Rio de Janeiro é.
Os tipos de violências apontados são muitos e, nisso, a curadoria de Leonardo Martinelli, Marina Polydoro, Ninah Nogino, Rafael Teixeira, Rafael Lopes Cesar e Suete Souza da Silva, acertou ao trazer a pluralidade de um Estado que insiste em se pensar apenas a partir de sua centralidade econômica.
Sabendo que os Rios são muitos e que, das mais diversas culturas se renova, a Mostra Outro Rio, surge como uma interessante possibilidade para repensar nossos espaços, corpos e trajetos.
Esperamos que tenha vida longa.
Clique aqui e seja direcionado à página da Mostra. As 27 obras ficam disponíveis até o dia 14 de agosto, mas será possível assistir a algumas delas em links oficiais no YouTube, Vimeo e outas hospedagens de vídeos.
Texto Curatorial
A Mostra Outro Rio nasceu com o objetivo de fazer um panorama da produção cinematográfica recente do nosso estado, refletindo a riqueza do formato curta-metragem e as visões dos diferentes lugares do Rio de Janeiro. Por duas semanas, de 31 de julho a 14 de agosto, exibiremos uma programação especial de curtas realizados a partir de 2015, com linguagens e temas diversos.
A Mostra foi um dos projetos contemplados pelo edital Cultura Presente nas Redes, oferecido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, pela Secretaria Estadual de Cultura e Economia Criativa e pelo Fundo Estadual de Cultura.
Segue um índice geral na ordem de apresentação dos filmes na página do evento. Clique em seus nomes para ser direcionado ao texto correspondente:
Índice de Filmes
25 Anos
Aruã e a Sombra
À Margem das Torres
Abate
Até a China
Cineclubismo na BF
Elégua
Eu, Minha Mãe e Wallace
Férias para Sempre
LGBaixadaT
Lyz Parayzo
Maria Adelaide
MC Jess
Minha História é Outra
Nada Além da Noite
Não me Prometa Nada
Neurovia Trem System
O Olho do Cão
O Quebra-Cabeça de Sara
Perpétuo
Quando as Pedras Dilatam
Queda D’Água
Saudades de Amélia
Sem Pai, Nem Mãe
Ser Feliz no Vão
Tem Coisas que Só Acontecem no Japeri
Travessia
Entrevista Rafael Teixeira, curador da Mostra Outro Rio
Mostra Outro Rio
25 Anos
(Diego Mello, João Pedro Castro e Rafael Machado, 2018)
É difícil imaginar um recorte da sociedade brasileira sem futebol. “25 Anos“, primeiro curta-metragem disponível na Mostra Outro Rio, se vale tanto como retrato do município de Campos dos Goytacazes, na região Norte do Estado do Rio de Janeiro, quanto como objeto de identificação de qualquer amante do esporte. Não à toa, integrou a seleção do CineFoot 2018, um festival que alia duas de minhas paixões: futebol e cinema. O curta-metragem do trio Diego Mello, João Pedro Castro e Rafael Machado conta a trajetória do time Goytacaz rumo à elite do Campeonato Carioca.
Por sinal, a nomenclatura do torneio de futebol do Rio de Janeiro já diz muito sobre a forte centralidade da aludida Cidade Maravilhosa. Há muito que o campeonato se chama oficialmente “Estadual do Rio de Janeiro”, mas a herança do período em que tudo o que não era a capital federal fazia parte do Estado da Guanabara permaneceu. A influência dos quatro clubes da cidade aparece algumas vezes na obra. Principalmente nos cantos da torcida do time documentado, por vezes meras adaptações do que flamenguistas, vascaínos, tricolores e botafoguenses cantam nos estádios.
Mas “25 Anos” tem a força universalista do futebol, um filme com potencial para agradar qualquer um que minimamente já se envolveu com a peleja. É uma narrativa de insistência, da sobrevivência de um time que há quase três décadas não faz parte do grupo de ponta – e mesmo assim possui torcedores apaixonados, muitos deles mais jovens do que a última vez em que o clube participou da elite. Fez eu me lembrar da final da Taça Guanabara de 2006, em que fui no Maracanã assistir Botafogo x América do lado vermelho do estádio. Quase como uma homenagem ao meu avô, falecido dois anos antes – e que nunca imaginava um novo período de glória do seu clube do coração. Até hoje os torcedores têm um pênalti engasgado na conta do árbitro (lembrar desse jogo para José Trajano é uma ofensa).
Naquela tarde de domingo, me chamou a atenção o carinho com o qual um time, independente de seu tamanho, atrai. As trocas que são feitas por gerações distintas, a importância cultural de um momento como aquele. E “25 Anos” é muito sobre isso e ainda pode contar, em uma das partidas, com as lindas possibilidades de imagens do Estádio Moça Bonita, em Bangu. Pena que o jejum de títulos não possibilitou um grand finale com o Goytacaz entrando em campo contra um dos quatro times grandes do Rio de Janeiro – culpa de um regulamento esdrúxulo do torneio, que faz o time subir, mas não ficar em cima. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
Aruã e a Sombra
(Catharina Felix, 2020)
Feito com estruturas de bonecos de papel bem simples, “Aruã e a Sombra“, de Cathatina Felix, vale-se da utilização da luz como principal estratégia para contar a história de um personagem que vive um embate com sua própria figura, sua sombra.
O filme lembra um pouco aquela brincadeira de criança de contar histórias com as sombras que fazíamos nas mãos, mas traz uma reflexão complexa sobre o ser e suas contradições ou ambiguidades.
Aruã se apavora com seu lado sombrio tal qual nós mesmos muitas vezes nos pegamos assustados com o que há de ruim em cada um de nós. Em um enfrentamento direto entre corpo e a sombra , que traz à tona o que Aruã não gostaria de ver, em sua solidão, é obrigado a enfrentar e assumir tudo o que é. (Roberta Mathias)
Mostra Outro Rio
À Margem das Torres
(Ton Apolinário, 2019)
Em “À Margem das Torres“, o diretor Ton Apolínário parte da tese de Doutorado de Raphaella dos Santos Souza, “Espaço e Comunidade em Face de Grandes Projetos Públicos“, para pensar a implementação do Parque Madureira, inicialmente criado no território da comunidade Vila das Torres.
Exaltado como um dos projetos do então prefeito Eduardo Paes para tornar a cidade mais aprazível e fazer jus aos grandes eventos que ocorreram no período de seu mandato, tanto a tese quanto o filme mostram o outro lado da construção do Parque.
A comunidade Vila das Torres (assim conhecida pela proximidade com as Torres da Light, fornecedora de energia elétrica da região), ficava ao lado da comunidade Vila Magno e, entre elas, uma grande plantação de hortaliças, legumes e folhas que eram consumidas pelos moradores e vendidas no Mercadão de Madureira.
Com a remoção da comunidade, foi-se também a plantação e, com elas, grande parte dos moradores da região. Ao trazer o Parque, que pode ser entendido como um espaço de lazer (e efetivamente o é para a população do entorno), a Prefeitura, no entanto, não realocou os antigos moradores pensando em seus trabalhos e necessidades.
É verdade que esse é um processo recorrente no crescimento da cidade do Rio de Janeiro que pode ser pensado desde Pereira Passos, até remoções mais recentes. Assim, o filme se torna um importante registro e conta, a partir do depoimento dos moradores, toda a contradição que a estrutura do Parque carrega consigo.
Ao todo, foram dez mil famílias removidas do local. Todavia, o impacto é ainda maior, uma vez que a venda das ervas não impactava somente a vida dessas pessoas. Com isso, o curta-metragem faz uma reflexão sobre as políticas públicas e o abismo que existe em seus discursos e suas práticas. (Roberta Mathias)
Mostra Outro Rio
Abate
(Lucas Vinzon, 2017)
Em “Abate” lidamos com uma lembrança que deve tocar boa parte dos espectadores: a perda de um lugar. Lucas Vinzon conta a história de uma jovem que descobre que a fazenda da família foi vendida. Sentindo como se tivesse perdido um pedaço de si, ela tenta consertar essa tragédia pessoal se reencontrando com aquele território.
Pode parecer inventado, mas quase todas as obras da Mostra Outro Rio tocam diretamente em algum prisma da minha existência. De fato, já passei por duas “perdas de um lugar” e até hoje dói lembrar deles e saber que dificilmente lá retornarei. Essa conexão da protagonista Isabel se explica não apenas pelo saudosismo, porque nos remete a um passado que a psicologia entende que idealizamos sempre como algo melhor do que o presente. Na narrativa de Vinzon, há algo mais do que a romantização e esse retorno com um paralelo ao abate do título permite novas significações.
Deixar de pertencer a algum lugar (ou comunidade, relacionamento, grupo) gera em nós uma dúvida sobre nossa existência. Isabel não tem apenas a indignação da perda. Ela começa a vislumbrar o que seria da sua vida sem aquele rompimento, um exercício que fatalmente passamos em situações como esta. Por isso é tão fundamental esse abate, essa exorcização, esse “deixar ir”. Pode ser “só” um lugar, aquela fazenda do avô. Mas a lição fica e esse curta-metragem nos permite ampliar essa reflexão. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
Até a China
(Marão, 2015)
“Até a China” mostra como o desenhista e animador Marão segue em boa forma. Um curta-metragem pensado como diário de bordo de uma viagem ao outro lado do mundo, mas uma obra que, por fim, funciona a mais de um propósito. De forma bem-humorada, sem descambar para a sátira vulgar, o cineasta brinca com as diferenças culturais sem agredi-las. Conhecido por outras produções direcionadas ao público infantil, talvez este trabalho não possa ser creditado especificamente aos mais jovens. Mesmo assim, é um ótimo exemplo de como as trocas, as percepções das diferenças, merecem ser notadas e trabalhadas em cada um.
Para o público adulto, “Até a China” também funciona muito bem, por conta da narração criada por Marão. Os trajetos dos despachos das malas, das escalas, as dificuldades causadas pela ausência de domínio do idioma e do jet lag se somam ao já citado intercâmbio cultural. A linearidade faz com que o clima de contação de história vire quase uma peça no estilo de comédia stand up, valorizando a comicidade a partir de uma animação muito divertida. Faz lembrar o desenvolvimento da linguagem da internet, que se valeu muito de jovens animadores para criar um entretenimento simples e de forte apelo popular. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
Cineclubismo na BF
(Carol Vilamaro, 2018)
“Cineclubismo na BF“, de Carol Vilamaro, já é quase um clássico da produção de curtas-metragens do Rio de Janeiro. Exibido algumas vezes no canal Futura, fez um importante caminho de registro por festivais e deixou eternizado o registro de alguns dos pontos de cultura mais relevantes da Baixada Fluminense. Realizado em parceria com o Cinema Nosso, local de resistência no coração da Lapa, apresenta para quem não conhece o Buraco do Getúlio e XuxuComXis (Nova Iguaçu), Mate com Angu (Duque de Caxias), Facção Feminista (Nilópolis), Donana (Belford Roxo) e Guerrilha da Baixada (São João de Meriri). Tantos e tão bem apresentados, de forma sucinta, quase como um convite para o espectador que tenha a possibilidade conheça melhor cada um deles. Deixa o terço final para listar os desafios – e os problemas são os mais inacreditáveis.
Faz lembrar um período fundamental para o audiovisual brasileiro, em que a formação de cineclubes foi incentivada pelo finado Ministério da Cultura, com editais onde era possível conseguir ferramentas necessárias para fazer a coisa andar. A extensão da força de um cineclube é difícil de ser medida. Seu caráter educacional, incentivador, fomentador de debates. Há alcances curtos e longos, cada sessão tem sua história – mas pensar em quantos frequentadores se tornaram realizadores ou aplicaram suas vivências em seu agir político, é começar a se dar conta do peso de uma atividade cultural desta monta na sociedade.
A Mostra Outro Rio transita bastante pela capital do Estado, mas o registro específico da Baixada Fluminense não poderia ser melhor. Uma região que abriga milhões de habitantes, muitos deles (representados na sequência inicial), não sabem que tão perto de casa o Cinema vive e está a nossa espera. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
Eleguá
(Yuri Costa, 2018)
“Eleguá“, dirigido por Yuri Costa e protagonizado por Timbuca Hai (que também está em “Perpétuo“, outro filme da Mostra Outro Rio), já anuncia sua temática não somente no nome, mas também em sua tela de abertura. Eleguá, em iorubá, significa aquele que abre ou fecha os caminhos. E é a Exú que o filme faz referência o tempo todo.
Mariana se depara com a dificuldade de voltar para casa após passar um período internada por conta de problemas psiquiátricos. A interpretação de Timbuca consegue fazer com que a personagem seja, ao mesmo tempo, frágil e forte.
O cineasta, ao abordar a temática da depressão e dos distúrbios mentais, também expõe o que todos sabemos e escolhemos ignorar. As doenças psiquiátricas não são exclusividade dos corpos ricos e entediados. Nos corpos mais atacados elas fazem sua morada. A dor do cotidiano, muitas vezes, se expressa através de distúrbios. Porém, nem sempre há tempo. Em mais um ato de agressão, muitas pessoas se deixam adoecer pela falta de possibilidades de um tratamento mais prolongado e adequado. Afinal, precisam trabalhar.
Assim, Mariana representa uma série de outras mulheres negras que sofrem até o extremo e têm em Exú seu guia. (Roberta Mathias)
Mostra Outro Rio
Eu, Minha Mãe e Wallace
(Irmãos Carvalho, 2018)
Revisto quase um ano após sua apresentação na Mostra Sesc de Cinema, “Eu, Minha Mãe e Wallace“, dos Irmãos Caravalho – pensado na primeira experiência como um ótimo exercício narrativo a partir da fotografia – ganha novos ares em uma análise em perspectiva da ausência de ressocialização das penas privativas de liberade. Um tema comum na filmografia de Affonso Uchoa (falamos um pouco sobre o assunto em nossas críticas de “A Vizinhança do Tigre” e “Arábia“) e que, no formato curta-metragem, geralmente é circundado a partir do documental.
Aqui a ficcionalidade permite que se abarque outras questões, como a alienação parental. É um exemplar clássico de histórias feitas em menor duração, entregando uma revelação relacionando a fotografia com o título da obra, algo que torna sua mensagem ainda mais marcante. A linearidade facilita a ambientação, mostrando a visita do protagonista ao irmão e o confronto entre duas vidas que tomaram caminhos distintos: um utiliza sua saída temporária enquanto o outro conta as dificuldades de equilibrar trabalho, faculdade e casamento. Onze anos os separaram, visto que o segundo não quis visitar o primeiro. Não há um juízo de valor propriamente dito, mas é difícil para o espectador não julgar as atitudes pretéritas e as que parecem ser as futuras daquele homem, que ensaia um rompimento total com suas origens e relações.
Mesmo aparentando colecionar imperfeições, a sensibilidade de repetir um gesto de família, com uma aparente herança de amor pela fotografia, nos coloca mais próximos dele do que uma narrativa tradicional. Algo que a ultrapassada dicotomia da valorização de qualidades, em justaposição a caricatos defeitos não permitiria. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
Férias para Sempre
(Pedro Tavares e Gabriel Papaléo, 2019)
“Férias para Sempre“, de Pedro Tavares e Gabriel Papaléo, é daqueles de provocar muitas questões. Assistido dentro da Mostra Outro Rio, termina se destacando pela face territorial. Provavelmente grade parte dos moradores e visitantes da Barra da Tijuca não caminharam por suas ruas. Se um dia o fizessem, entenderiam o quão sufocante é essa experiência, geralmente reservadas aos trabalhadores que se deslocam por transporte público e aos jovens – estes motivados pela incontrolável rebeldia da idade.
A Avenida das Américas, então, onde as ações do curta-metragem se desenrolam, é o que há de mais desesperador. A dupla de cineastas reservam alguns momentos iniciais para demonstrar a impossibilidade de se conversar em um ambiente devorado pelo som da rua – e ironicamente o preenchem com velhos companheiros do Cinema Brasileiro e suas tentativas de entender nosso país. A passarela que liga o Barra Shopping ao Fórum e ao Centro Empresarial parece um túnel futurista, mas toda a Barra é distópica tanto imageticamente quanto como um conceito de território. Dessa maneira, talvez um pouco autobiográfica, de pensar aquele espaço, Tavares e Papaléo usam as indignações juvenis a favor de sua história.
Nada mais é do que a aproximação das responsabilidades, algo que automaticamente criará um olhar crítico sobre aquele local. A playlist do Spotify não é premium e uma propaganda do Senac intimando a garotada a correr atrás de um trabalho é o que se grava de uma festa rock improvisada no apartamento de um deles. Com a idade, as noites ficam muito parecidas e bem diferentes daquela vivida por Messi e Johnny, protagonistas de “Férias para Sempre”. Está criado o ponto de partida que irá contrapor o prédio da CBF e a autoproclamada Cidade das Artes, elementos desta distopia barrense. Ao contrário do pensado por Sean Baker em “Projeto Flórida” (2017), não estamos aqui diante da exploração de um território invisibilizado. Os emissores da mensagem optam, acertadamente, por mergulhar por um território visto por todos – mas das janelas de seus carros. É como se mostrasse que a calçada da Barra é tão real quanto os corredores iluminados das galerias comerciais enfileiradas pela avenida.
E o emprego surge, como um evento. O prêmio é voltar ao lugar de poder, mesmo que da caçamba. “Férias para Sempre” poderia criar falsas interações ou reputar aos protagonistas lições de vida magicamente aprendidas ou apreendidas em uma noite flopada. Mas segue uma outra perspectiva. Aquela que vê o fim de um ciclo como algo que supera a mera experiência, sendo realmente uma vitória. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
L.G.Baixada.T
(Artur Fortes, 2019)
No curta-metragem documental “L.G.Baixada.T.“, o cineasta Artur Fortes entrevista diversas pessoas de orientações sexuais distintas, entre lésbicas, bissexuais e gays. Fortes busca trazer personagens de diversos pontos da Baixada para pensarmos na existência dessas pessoas ao longo da cidade. Assim, passamos por Duque de Caxias, Seropédica e Belford Roxo. Enquanto narram suas dificuldades, cada um dos entrevistados demonstra um certo incômodo ao caminhar pelas ruas de seus bairros e municípios.
A forte característica religiosa de alguns espaços é lembrada como possível causa do clima hostil que essas pessoas encontram durante a rotina diária. Uma simples volta ou um passeio à noite podem necessitar de uma estratégia que não deveria ser usual.
O diretor também busca apresentar a orientação sexual como um espaço aberto, em diálogo. Traz, então, um casal de bissexuais com filho. Família convencida de que, por estarem em um relacionamento hetero, agora assumiram a postura padrão e considerada adequada pela sociedade. Como no filme “O Quebra-cabeça de Sara”, também encontrado na Mostra Outro Rio, podemos perceber que falta um entendimento mais amplo da sexualidade humana. (Roberta Mathias)
Mostra Outro Rio
Lyz Parayzo: Artista do Fim do Mundo
(Fernando Santana, 2019)
Vencedor do prêmio de melhor curta-metragem da festival Visões Periféricas de 2019, “Lyz Parayzo: Artista do Fim do Mundo“, dirigido por Fernando Santana, apresenta a personagem vivida pelo performer residente em Campo Grande, na Zona Oeste da Capital.
Com passagem em diversos festivais, o documentário mostra o início de carreira do artista que também é cercado pelo seu deslocamento pela cidade. Como a maioria de suas performances são feitas na Zona Sul, Lyz fala sobre o deslocamento e o preconceito que encontra, inclusive, na faculdade de teatro.
Assim, traz apresentações como “Bixa Presente” (uma paródia da Operação de Segurança do Estado do Rio de Janeiro); “Fato-Indumento”, na qual se veste com papel rosa em meio ao público; e “Manicure Política”, quando pinta também de rosa as unhas dos convidados. Marcam as atuações de um artista sempre com uma motivação política expressa: mostrar o corpo gay como centralidade nos territórios.
Lyz quase sempre interage diretamente com o público, colocando seu corpo mesmo como objeto artístico. Com isso, nos faz pensar também em seus trajetos pelos espaços da cidade. Se define como um vírus, o que poderíamos entender como um vírus queer da arte. Vírus esse que nos faz muito bem.
Em 2017 concorreu ao importante prêmio PIPA e hoje vive em São Paulo, desenvolvendo um trabalho um pouco diferente do que o projetou. Continua, no entanto, a refletir sobre a corporalidade e o espaço e se torna um nome de referência no cenário nacional. (Roberta Mathias)
Mostra Outro Rio
Maria Adelaide
(Catarina de Almeida, 2018)
“Maria Adelaide“, curta-metragem de Catarina de Almeida, é a junção do Rio de Janeiro trabalhador e estudante. Duas formas, por vezes (infelizmente) paralelas, de se buscar um futuro a sua maneira. Produzido no curso de graduação em Cinema da Universidade Estácio de Sá – um campus muito bem equipado na Barra da Tijuca, traz a história de uma jovem que quer se ver além da busca diária pela sobrevivência. Vindo da região Nordeste do Brasil, ela precisa se livrar do sentimento de solidão que a obra de Catarina nos provoca. Quem ainda estereotipa os retirantes de outras gerações, romantizando suas conquistas ao som de canções como Taxi Lunar do pernambucano Geraldo Azevedo (que faz parte da trilha sonora), precisa compreender que novas crises nos traz novas experiências.
O filme da diretora aproxima bem esta questão. Uma protagonista que não se sente acolhida pelos seus conterrâneos e nem pela cidade onde passa a morar. Em um primeiro momento, tenta demonstrar ser o que acredita que os outros querem ver nela. Com o passar do tempo, explorando o Rio de Janeiro carregado de obviedades – mas ainda assim encantador – suas transições pela Feira de Tradições Nordestinas e pela Lapa começam a sedimentar a construção (ou libertação) de sua personalidade. Maria Adelaide, ao som de Conta Gotas da baiana Karina Buhr, nos dirá mais sobre nós caso o simplismo e a unidimensionalidade de análises sejam colocadas de lado. É uma identificação inescapável de todos aqueles que viveram, pelo menos uma vez, o clique que nos motiva a tomar um outro caminho em nossa trajetória. Tal qual Maria Adelaide, ao tomar essa decisão há muitos anos, também fiz uma revigorante caminhada nas proximidades dos Arcos. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
MC Jess
(Carla Villa-Lobos, 2018)
Ao misturar ficção e documentário, Carla Villa-Lobos apresenta “MC Jess“, mulher preta, pobre e lésbica que vê na poesia um espaço de expressão até então desconhecido. A jovem, que trabalha vendendo equipamentos sonoros no trem, não conta com a compreensão do pai (pastor) e vive, por conta disso, uma relação de afastamento com a mãe.
Ao mostrar a dura rotina de Jess, a diretora, nos remete às diversas artistas do slam – modalidade de poesia improvisada na rua – e chega a caminhos bem parecidos. Sofrendo preconceito e entendo essa poesia como a única maneira de serem ouvidas, essas mulheres tomam para si a centralidade que nunca tiveram.
O slam torna-se importante arma de protesto e resistência em um território árido e de difícil percurso para todas elas. Nossa protagonista, vivida por Carol Dall Farra, atesta: se livrar dos traumas a partir da arte é difícil, porém possível. (Roberta Mathias)
Mostra Outro Rio
Minha História é Outra
(Mariana Campos, 2019)
“Minha História é Outra“, de Mariana Campos, acompanha a vida de Niázia e de Leilane. Apesar de possuírem vidas um pouco diferentes, já que a primeira mora no Morro do Otto e a segunda é estudante de Direito na UFF (Universidade Federal Fluminense, de Niterói), outras tantas coisas as unem. Ambas não nasceram em famílias abastadas. Ambas são pretas. Ambas são lésbicas.
Niázia não parece estar em um relacionamento fixo, mas faz sempre questão de elogiar a amiga. Enquanto planejam estratégias para entrevistas de emprego (na qual Niázia aconselha: não vá muito sapatona!), também trocam afetos, carinhos e elogios.
Certa vez fui perguntada porque mulheres pretas se elogiam tanto. Apesar de achar a resposta meio óbvia, tentei sair do meu lugar e só consegui responder: porque não estamos acostumadas a receber elogios.
Na infância e na adolescência não nos chamam de bonitas, de inteligentes ou de potentes. Os elogios, quando aparecem, são quase sempre invasivos. Por isso, quando crescemos e tomamos consciência da sabotagem que nos é imposta fazemos questão de elogiar o trabalho bem feito de outra mulher preta. Suas unhas bonitas, seu cabelo trançado, seu black, sua voz. Fazemos questão de dizer: você é linda.
Os gatilhos, como uma das amigas de Leilane diz, aparecem na forma como muitas vezes optamos por um relacionamento com uma mulher branca em detrimento de uma mulher preta. E, como ela mesma conclui, se for sempre assim, muitas de nós permanecerá sozinha.
Para além disso, há algo mais delicado e profundo, o reconhecimento. Não é que queiramos nos olhar no espelho, estamos longe de ter síndrome de Narciso (aliás, nem combina com nossos corpos), mas é porque algumas questões só são entendidas por mulheres pretas. Isso pode parecer radicalismo de minha parte, porém, como essas meninas mais jovens e mais inteligentes do que eu propõem, deve ser um dos temas centrais do movimento LGBTQIA+. Como e de que forma mulheres pretas são incluídas nas discussões? Quais são as pautas? Elas existem ou somente em um âmbito bem próximo ao assistencialismo? “Toma aqui sua cota de sapatão lésbica nesse bonde”.
As representações e a cultura são cristalizadas, se não indagarmos, nos movermos e questionarmos tudo permanecerá igual. A proposta não é pelo distanciamento ,mas pelo diálogo.
Mas no fim, bem lá no fundo, dentro de todos nossos questionamentos e confusões, o amor vem mesmo na forma de uma mulher preta. E é incrível quando ele chega. (Texto escrito originalmente por Roberta Mathias na cobertura da Sessão 02 da Mostra Competitiva do Festival Taguatinga de Cinema 2020).
Mostra Outro Rio
Nada Além da Noite
(Rodrigo de Janeiro, 2019)
Em “Nada Além da Noite” o realizador Rodrigo de Janeiro constrói sua ficção no bairro da Pavuna, onde um antigo frequentador da Igreja, Bob vive às voltas de um amigo preocupado em resgatá-lo novamente e em um momento no qual, no Brasil, estávamos todos em busca da salvação – que poderia vir de maneiras distintas.
Ao trazer a votação do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 para a cena, o diretor faz um recorte geracional. De um lado podemos ver uma avó que toma conta do neto, mas pouco entende o que ocorre nas telas (frase dita pela própria personagem). Do outro, um jovem adulto sem trabalho que passa os dias refletindo sobre sua trajetória até o momento. Bob é reflexo de muitos desempregados que encontramos na cidade e, para a maioria deles, a salvação se apresenta distante.
O bebê com seus quase dois anos parece saber mais sobre o que o futuro nos reservava do que a maioria dos personagens. Mas podemos também entender que a metáfora de Janeiro ainda pode ser construída por uma geração que conseguiu se erguer durante os anos de ampliação das vagas no ensino público superior. Talvez ali mesmo da Pavuna saiam novos Bobs que encontrem caminhos diferentes e que assumam papéis de importância significativa no cenário política. Capazes de realizar um futuro outro. (Roberta Mathias)
Mostra Outro Rio
Não me Prometa Nada
(Eva Randolph, 2017)
A Tijuca parecia o cenário improvável de “Não me Prometa Nada“, de Eva Randolph. Mas quem, nos últimos tempos, passou pelo largo após a sede social do América Football Club, na região entre as Praças da Bandeira e Afonso Pena, viu as mudanças estéticas na região, que abriga a Associação Cultural Chinesa no Rio de Janeiro. Ali, na Rua Gonçalves Crespo, o prédio passou a abrigar eventos frequentes e obras reforçaram as referências visuais ao país mais populoso do mundo.
O curta-metragem traz uma história de despedida. Ayon precisa deixar a paixão pela prima Hua quando recebe uma passagem para voltar à terra-natal em poucos dias. Isso faz com que “Não me Prometa Nada” gire em torno do fim de uma possibilidade. A consolidação do amor – já dificultada pelo grau de parentesco, fazendo com que se manifeste de forma secreta – precisa ser adiada por forças das circunstâncias. Do mesmo modo, a Tijuca de 2015 parece não se importar muito com isso. Ela vive suas próprias expectativas e suas possibilidades infinitas com as proximidades dos Jogos Olímpicos. Em paralelo à gestação do golpe antidemocrático de 2016, um castelo de areia hipnotizante que nos fez apostar “que tudo será melhor depois das Olimpíadas”. O profeta Petkovic estava errado e a lógica estava certa.
Randolph traz um pouco da força comunitária e da integração familiar do povo chinês, que se pauta em um processo duro de preservação cultural – principalmente idiomática, chegando a ser munição para discurso xenófobo de quem acha “um abuso” vê-los conversando em mandarim. Ao mesmo tempo, é uma crônica de uma cidade que vivia o auge de um período em que muito lhe foi prometido e hoje vive uma frustração tão grande quanto a de um amor perdido. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
Neurovia Trem System
(Luiz Henrique, 2019)
“Neurovia Trem System” é uma experimentação audiovisual que explora os sons metálicos do trem, suas peças e engrenagens. Investiga seus vagões como se fossem corpos e traz um pouco de suas sonoridades e histórias. Para composição, o diretor Luiz Henrique Passos encontrou no desenho de som de Arthur Ribeiro Alves Lima um ritmo que adotou também em sua edição.
Em decorrência, o curta-metragem parece uma espécie de sinfonia visual que nos faz observar os detalhes dos vagões até em suas menores peças. Ao inserir depoimentos, Luiz Passos também dá vida ao corpo completamente tecnológico do meio de transporte e insere vozes humanas e suas experiências. (Roberta Mathias)
Mostra Outro Rio
O Olho do Cão
(Samuel Lobo, 2017)
“O Olho do Cão” do realizador Samuel Lobo, nos coloca em uma interessante região do Rio de Janeiro: a ponta da Zona Norte mais próxima do Centro e da Zona Sul. Mais precisamente no Rio Comprido, perto do Morro do Turano. As cercanias da Tijuca tem dessas complexidades em suas nomenclaturas. Quem tem grana não aceita o título de suburbano e enfatiza que mora na “Zona Norte”. As comunidades que integram sua vizinhança são vistas de outra forma, automaticamente migrando as partes mais ricas para uma ficção denominada de “Grande Tijuca”.
Nesta crise de identidade de um grade recorte da cidade, um grupo de jovens faz o que nós aqui, chamem de subúrbio ou não, adoramos fazer em um domingo de tempo aberto: churrasco entre amigos – ou filar um almoço na casa dos pais. Privilégios que permanecem apenas aos que não se afastaram dos parentes nas últimas eleições ou tem um colega que ainda não se rendeu a um apartamento de 40m² e possua uma casa para nos receber (eu só posso garantir uma cota vegetariana do evento).
O curta-metragem se vale dessa ambientação simples, corriqueira, para trazer um pouco da “geração que se perdeu”. Aquela que parecia que teria mais do que os pais, uma classe média muito mais viajada e que foi atropelada pelos fatores que fazem do Brasil essa terra única. Uma delas é a violência e, falando de Rio de Janeiro, evocar este vocábulo é trazer no seu cangote a Polícia. Esta que surge como fiscal da vida alheia e atrapalha a liberdade de um churrasco de amigos entendendo que, ali, adentra um território onde lhe é permitido agir sem pedir licença.
Alguém no dia 7266558701 da minha quarentena escreveu em uma rede social que sentia falta até de encontrar aquele amigo babaca no bar. “O Olho do Cão” é o tipo de obra que nos faz lembrar que vivemos em uma cidade tão atolada de problema sociais estruturais, que não podemos esmorecer e deixar debates se perderem. Um dia voltaremos ao bar e precisaremos gastar muita saliva, reposta com um engradado de litrão acomodado embaixo da mesa – para fazer convencer a alienados (ou apenas babacas) que o militarismo precisa acabar. (Jorge Cruz)
Mostra Outro Rio
O Quebra-Cabeça de Sara
(Allan Ribeiro, 2017)
Em “O Quebra-Cabeça de Sara“, o diretor Allan Ribeiro flagra alguns momentos no cotidiano da diarista Sara Neves. Inicialmente, o que parece um filme sobre seu trabalho se transforma em uma obra sobre preconceitos e limitações.
Sara recentemente descobre que a filha é bissexual e não consegue entender a relação homoafeitva da mesma com a nova namorada. Isto porque, em seu entendimento, ela, que já tem certa idade e um filho, “nunca foi disso”.
A personagem-título revela as faces e as dificuldades de muitas pessoas no entendimento da sexualidade. Ainda que tente encarar com naturalidade a orientação sexual da filha, revela em seu discurso o que até bem pouco tempo era verbalizado. Entende o afeto da filha como opção.
Ainda que, aos seus olhos, esteja sendo compreensiva, Sara só consegue chegar até certo ponto em sua compreensão e admite o preconceito.
O entendimento que falta é justamente o da ideia de que a orientação sexual é bem mais abrangente do que o que nos foi ensinado durante anos. Esse entendimento passa também por uma desconstrução. Dessa forma, o próprio título se torna uma interessante metáfora sobre os possíveis trajetos de Sara para aproximação de um entendimento. Talvez, ela tenha que desmontar o percurso que fez até chegar ao seu quebra-cabeças completo. (Roberta Mathias)
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Perpétuo
(Lorran Dias, 2018)
Clique aqui e leia a análise completa de Roberta Mathias para “Perpétuo”.
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Quando as Pedras Dilatam
(Diego Amorim, 2019)
Em “Quando as Pedras Dilatam” o realizador Diego Amorim acompanha o percurso da artista de rua Rita, vivida por Dani Câmara. Ao cantar as dificuldades de um povo preto e pobre, Rita percorre os vagões de trem e metrô da cidade e divide um casarão que se reconfigura em república estratégia cada vez mais adotada por diversas pessoas para morar no Rio de Janeiro.
Ao pensar sobre os espaços da cidade, muitos deles marcados pelo processo de uma formação colonial de Portugal, Rita encontra em seu caminho memórias de espaços de dor e solidão para seus ancestrais.
No Mercado de São José, antiga senzala, podemos parar e pensar por quantos espaços reconfigurados andamos, quantos deles escondem o passado tenebroso da escravidão. Às vezes, escavações, como a que passou pelo Porto do Rio, são necessárias para que possamos compreender o que foi o processo formador dessa cidade. Ainda que elas sejam feitas e refeitas apenas em nossas memórias e não diretamente no solo, são esses processos de escavação que poderão nos levar a um Rio que não esconde seu passado em camadas de asfaltos. (Roberta Mathias)
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Queda D’Água
(Lucas J. Badini, 2019)
Em “Queda D’Água” uma mistura de sentimentos que só o luto mal resolvido, ainda em fase de negação, consegue abarcar. Dois irmãos, Lara e Elias, se veem como estranhos. Após muito tempo sem contato, são poucas as conexões e uma delas é a casa localizada na região serrana do Rio de Janeiro. Daquelas antigas, que precisamos manter arejadas sempre que possível porque o “cheio de guardado” lhe é intrínseco. A mãe não aparece em cena e o pai é o motivo deles estarem ali. Uma perda recente e perguntas que não têm respostas. Dois adultos que tentam se organizar para ter um mínimo de convivência por alguns dias, mas a relação familiar grita.
As dúvidas são as mesmas e o diálogo acaba surgindo no meio de uma pedra, com o som da cachoeira. A água pode trazer paz, mas para os dois personagens a angústia fala mais alto. Tentam compreender porque decisões tão simples, como visitar um parente, parecem tão difíceis antes de “dar merda”. Quando vemos, a vida acabou e as chances de falar o que queremos foi-se embora.
O diretor Lucas J. Badini nos apresenta uma narrativa tão comum – mas que se repete tanto na vida real – que chega a doer. É provável que em boa parte dos espectadores, momentos como os vividos por Elias e Lara sejam apenas uma questão de tempo. O problema é que podemos ver incontáveis obras artísticas como esta, mas nunca estaremos preparados para sentirmos o que ali se passa quando a hora chega. (Jorge Cruz)
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Saudades de Amélia
(Gaboroto, 2020)
Gaboroto, que além do cineasta de “Saudades da Amélia” é um dos responsáveis pelo excelente canal Veganóias, usa de sua forma despojada de criar histórias para desnudar a hipocrisia da Zona Sul carioca – como se a carapuça já não estivesse vestida há m(u)ito tempo. O curta-metragem nos apresenta uma Amélia, essa sim mulher de verdade (acho que a clássica foi cancelada há uns bons anos). Ela acaba de se mudar para o aprazível vilarejo da Lagoa, um dos metros quadrados mais caros do Rio de Janeiro e lá precisa fazer a egípcia para todo o preconceito velado (pero no mucho) de seus vizinhos.
As crianças têm receio de Amélia, taxada pelos adultos – claro! – como comunista. Já os “pais e responsáveis” travestem de comunicação não violenta toda a discriminação atirada na porta da casa da protagonista, como se ela fosse uma visitante indesejada do zoológico que abriga aqueles “cidadãos de bem”. Acham que nas jaulas de seus condomínios as leis que valem são as deles. Começamos a ruir quando os vizinhos de Amélia acharam por bem exportar para a nossa realidade toda a bizarrice de seu reacionarismo. Gaboroto traz uma personagem ciente disto e que exerce muito bem a melhor forma de resistência: existir. Ali, no coração de quem lhe quer mal. (Jorge Cruz)
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Sem Pai, Nem Mãe
(Thays Pantuza, 2020)
Em “Sem Pai, Nem Mãe“, a cineasta Thays Pantuza conta a história de três jovens que se mudaram para Rio das Ostras e, ao observar seus relatos, mostra também como o crescimento populacional afetou a cidade.
Ao narrar suas chegadas, Biel, Mabel e Miuteza demonstram um estranhamento inicial que logo é substituído por um sentimento de integração e calmaria. No entanto, nenhum dos três jovens parece exatamente contente com a vida que leva e as duas mulheres reforçam que a violência sexual é um problema.
Contando com ruas escuras e pouco policiamento, a cidade viu seu índice de estupros crescer junto com a população. A instalação de um campus da UFF (Universidade Federal Fluminense) e outras melhorias fez com que o estufamento causasse uma perda da liberdade sentida nos primeiros anos.
Ao trazer três jovens que optaram pela mudança logo cedo, o curta-metragem faz um recorte múltiplo que podemos ver nas diferenças de discursos e expectativas. Enquanto Biel trabalha em uma fazenda, Miuteza é artista de rua e já teve seu trabalho exposto fora do país.
Assim, realidades muito próximas, em princípio, se mostram completamente diferentes e demonstram também como o crescimento de Rio das Ostras atraiu diversos tipos de pessoas, por mais que a população jovem seja a que mais tenha aumentado.
A violência que chega ao interior do Estado é apenas reflexo daquela que já conhecemos há muito nas grandes cidades e parece agora se estender por todo seu território. Essa narrativa é recorrente nas falas de pessoas que foram para o interior em busca de mais calma e agora enfrentam os mesmos problemas causados pelas desigualdades sociais que marcam a rotina das médias e grandes cidades do país. (Roberta Mathias)
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Ser Feliz no Vão
(Lucas H. Rossi dos Santos, 2020)
Começando com as imagens da ativista afro-peruana Victoria Santa Cruz e passando pelos mais diversos ritmos, épocas e danças que tenham alguma origem africana, Lucas Rossi contrapõe imagens de preconceito na cidade do Rio de Janeiro tendo os trens como linhas narrativas que dividem a cidade em muitas. Se, em algum momento, já falamos em cidade partida, hoje entendemos que as complexidades e abismos cariocas se repartem em bem mais pedaços. Evidentemente, deixando os mais desvalorizados para os pretos e pobres. “Ser Feliz no Vão” consegue ser um vídeo-clipe de denúncia. Imagens tão apartadas, mas que juntas contam a história racismo e classismo da cidade que, em plena decadência, ainda recorre aos antiquados padrões de capital “civilizada”. Uma pena que o Rio ainda viva de cartões-postais e não tenha descoberto o que lhe tona mais interessante: a diversidade. (Texto escrito originalmente por Roberta Mathias na cobertura do FestCurtas Fundaj 2020, organizado pela Cinemateca Pernambucana)
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Tem Coisas que Só Acontecem no Japeri
(Isadora Aventureira, 2019)
Em “Tem Coisas que só Acontecem no Japeri” somos confrontados com a inusitada ideia de três amigos, Isadora Aventureira (diretora do curta-metragem), João e Chica Veneno. Uma ideia que atrai olhares no vagão do terminal Japeri, que atravessa boa parte dos municípios da Baixada Fluminense. Ao colocar uma rede estirada no espaço entre os vagões, Isadora relaxa e bebe uma cerveja, enquanto dezenas de vendedores passam, mostrando a pluralidade de personagens encontrados diariamente nos ramais de trem do Rio de Janeiro.
A brincadeira faz com que se crie uma interação entre a jovem e alguns desses ambulantes – um exercício que a faz, inclusive, chegar ao nome do curta-metragem. Com uma ideia simples e apenas uma câmera de celular, podemos ter acesso ao que os amigos parecem querer mostrar: tudo pode acontecer em uma viagem de trem. (Roberta Mathias)
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Travessia
(Safira Moreira, 2017)
O documentário, “Travessia” da cineasta Safira Moreira, apesar de bem curto – são apenas cinco minutos, contém várias camadas. Começando com o poema de Conceição Evaristo, a cineasta lembra que muitas famílias negras não possuem registros fotográficos de seus antepassados, ainda que sejam dos mais próximos. Pedaço por pedaço passa, então, a analisar uma antiga fotografia na qual podemos ver uma senhora negra segurando um bebê branco.
Assim, os antigos registros de corpos escravizados vêm à nossa memória, muitas vezes, os únicos que possuíam, na função que lhes foi imposta. Às vezes parecemos nos esquecer de que a escravidão institucionalizada foi há pouco tempo retirada de nossas leis enquanto possibilidade – e de que ela ainda ocorre no país das mais diversas formas possíveis.
Com muita sensibilidade, Safira passa, então, a mostrar diversas fotos e a registrar diversas famílias, marcando seus corpos no tempo, no espaço e na memória visual de nossos arquivos. A música da caboverdiana Mayra Andrade acessa mais um registro de memória. A ligação entre os povos escravizados e Portugal.
É interessante pensar que, enquanto alguns de nós possui acesso a toda cultura que nos foi negada durante séculos, outros continuam a viver as mesmas bases e feridas sob as quais todos fomos fundados. A importância do registro se faz presente também por isso, para que não esqueçamos o que passamos e para que possamos trilhas novas conexões a partir de rotas ainda não exploradas. (Roberta Mathias)
Ficha Técnica da Mostra Outro Rio
25 Anos (Diego Mello, João Pedro Castro e Rafael Machado, 18″ – 2018)
Sinopse: A torcida do Goytacaz sofreu durante 25 anos longe da Série A do Campeonato Carioca. Em 2017, uma campanha histórica deixa o clube perto do retorno. “25 Anos” mostra a emoção de torcedores e jogadores do Alvianil ao longo da Série B1 do Carioca.
Aruã e a Sombra (Catharina Felix, 5″ – 2020)
Sinopse: No dia seguinte, não havia mais ninguém na cidade. De companhia, Aruã só tinha a própria Sombra. Aruã e a Sombra é um filme sobre conviver em paz com nossa própria escuridão.
À Margem das Torres (Ton Apolinário, 25″ – 2019)
Sinopse: Vila das Torres foi uma comunidade auto construída a partir de uma das maiores hortas urbanas do Rio de Janeiro, abaixo das torres de energia da companhia Light e ao lado das linhas do trem. Em 2010, a comunidade foi completamente removida para a construção do Parque Madureira. Oito anos depois ex-moradores e vizinhos compartilham seu passado e os efeitos de seu apagamento
Abate (Lucas Vinzon, 15″ – 2017)
Sinopse: Isabel recebe a notícia de que a fazenda de seu avô Ismael, seu lugar de afeto durante a infância, foi vendida pelos pais sem que ela soubesse. Impulsionada por suas memórias veladas, pega o carro da mãe na madrugada e dirige até a fazenda em uma tentativa de reparar o passado.
Até a China (Marão, 15″ – 2015)
Sinopse: Fui pra China só com bagagem de mão. Na China os motociclistas usam casaco ao contrário e os restaurantes servem cabeças de peixe, lagostins e enguias. A funcionária do evento estuda cinema e gosta de filmes de Kung Fu. Comprei pés de galinha embalados a vácuo.
Cineclubismo na BF (Carol Vilamaro, 22″ – 2018)
Sinopse: Na Baixada Fluminense, coletivos culturais independentes iniciaram um movimento cineclubista que leva o cinema até o espectador. Há mais de dez anos atuando no território, esses Cineclubes tem um papel fundamental na construção social das regiões periféricas e abrem o debate para transformação do cotidiano nessas cidades. Promover Cineclubes é preservar a possibilidade do encontro, da identificação com o outro e o prazer de compartilhar e motivar pessoas.
Elégua (Yuri Cista, 26″ – 2018)
Sinopse: Mariana é uma jovem se recuperando de uma séria crise de depressão. ela só quer ser feliz, mas ainda precisa encontrar seu caminho.
Eu, Minha Mãe e Wallace (Irmãos Carvalho, 22″ – 2018)
Sinopse: A história de uma fotografia: Uma mãe solteira, um pai ausente e uma criança.
Férias para Sempre (Pedro Tavares e Gabriel Papaléo, 23″ – 2019)
Sinopse: Messi e Johnny são convidados para uma festa na Barra da Tijuca. Quando ficam presos do lado de fora, eles têm a noite inteira para explorar as ruas e descobrir que esse lugar não foi feito para eles.
LGBaixadaT (Artur Fortes, 20″ – 2019)
Sinopse: Lorrane é uma jovem bissexual, moradora da Baixada Fluminense. Acompanhando um dia na vida de Lorrane, intercalando com depoimentos de pessoas LGBTs que também residem na Baixada, chegamos ao seguinte debate: o que há de diferente no cotidiano de uma pessoa LGBT em comparação com o de qualquer outra pessoa? L.G.Baixada.T. se propõe a responder essa pergunta.
Lyz Parayzo: Artista do Fim do Mundo (Fernando Santana, 15′ – 2019)
Sinopse: A obra independente acompanha o início da trajetória artística de Lyz Parayzo, artista visual que através de suas obras e performances, coloca em discussão qual o espaço da arte em um corpo não binário provindo da periferia.
Maria Adelaide (Catarina de Almeida, 15″ – 2018)
Sinopse: Maria Adelaide, retirante nordestina, descobre na cidade grande do Rio de Janeiro uma identidade que permanecia escondida.
MC Jess (Carla Villa-Lobos, 20′ – 2018)
Sinopse: Jéssica tem que enfrentar o preconceito cotidiano. Encontra na arte uma forma de se expressar e superar suas inseguranças.
Minha História é Outra (Mariana Campos, 22″ – 2019)
Sinopse: O amor entre mulheres negras é mais que uma história de amor? Niázia, moradora do Morro da Otto, abre a sua casa para compartilhar as camadas mais importantes na busca por essa resposta. Já a estudante de direito Leilane nos apresenta os desafios e possibilidades de construir uma jornada de afeto com Camila.
Nada Além da Noite (Rodrigo de Janeiro, 21″ – 2019)
Sinopse: Cai a Noite na Pavuna: Enquanto Bob revisita seu passado com um amigo de infância, o pequeno Augusto e sua avó acompanham na TV uma votação que vai mudar os rumos do Brasil.
Não me Prometa Nada (Eva Randolph, 22″ – 2017)
Sinopse: Hua e Ayon – um casal de primos chineses – se apaixonam secretamente. De repente, tudo muda quando Ayon recebe uma passagem de volta para a China. As ruas da Tijuca se transformam para o ano novo chinês enquanto o Rio se prepara para as Olimpíadas.
Neurovia Trem System (Luiz Henrique, 10″ – 2019)
Sinopse: No Rio de Janeiro, o sistema ferroviário serve como uma das armas do governo para marginalizar populações periféricas. O filme procura investigar o trem e como ele se relaciona com os indivíduos e a cidade.
O Olho do Cão (Samuel Lobo, 20″ – 2017)
Sinopse: É domingo no Rio de Janeiro, Buck Jones sai para um passeio.
O Quebra-Cabeça de Sara (Allan Ribeiro, 11″ – 2017)
Sinopse: Em mais um dia de trabalho, Sara junta as peças de seus preconceitos.
Perpétuo (Lorran Dias, 24′ – 2018)
Sinopse: Silvia e Alex voltam a morar juntos. Ruínas do passado se atualizam no presente. Vida em movimento.
Quando as Pedras Dilatam (Diego Amorim, 21″ – 2019)
Sinopse: Rita canta uma cidade de diferentes fachadas e esquinas. Diante da quantidade enorme de assassinatos no Rio de Janeiro, certos lugares revelam que o passado é um presente e os espaços emanam nossa história.
Queda D’Água (Lucas J. Badini, 23″ – 2019)
Sinopse: Depois de anos distantes, os irmãos Lara e Elias se reencontram na antiga casa onde cresceram, na região serrana do Rio de Janeiro. Em meio ao frio e à neblina, eles precisam realizar um pedido de sua mãe. Mas, estranhos um ao outro, eles primeiro precisam achar uma maneira se reconectarem.
Saudades de Amélia (Gaboroto, 20″ – 2020)
Sinopse: Enquanto lida com o aflorar da curiosidade de suas novas vizinhas de condomínio, Amélia (Rafaela Baroni) recebe uma carta inusitada de um país estrangeiro. Um convite para encarar a profusão de peripécias do tempo.
Sem Pai, Nem Mãe (Thays Pantuza, 19″ – 2019)
Sinopse: Em um município recém-emancipado no interior do Estado do Rio, três jovens circulam pela cidade conquistando suas autonomias e evidenciando questões que envolvem suas próprias emancipações no território. Atravessando a cidade — e sendo atravessados por ela -, Biel, Muiteza e Mabel falam sobre afetos, (im) permanências e aspirações.
Ser Feliz no Vão (Lucas H. Rossi dos Santos, 12″ – 2020)
Sinopse: Um ensaio preto sobre trens, praias e ocupação de espaço.
Tem Coisas que Só Acontecem no Japeri (Isadora Aventureira, 11″ – 2019)
Sinopse: Uma garota curte a viagem no melhor ramal da SuperVia.
Travessia (Safira Moreira, 5″ – 2017)
Sinopse: Utilizando uma linguagem poética, Travessia parte da busca pela memória fotográfica das famílias negras e assume uma postura crítica e afirmativa diante da quase ausência e da estigmatização da representação do negro.
Textos Roberta Mathias:
Aruã e a Sombra
À Margem das Torres
Elégua
L.G.Baixada.T.
Lyz Parayzo: Artista do Fim do Mundo
MC Jess
Minha História é Outra
Nada Além da Noite
Neurovia Trem System
O Quebra-Cabeça de Sara
Perpétuo
Quando as Pedras Dilatam
Sem Pai, Nem Mãe
Ser Feliz no Vão
Tem Coisas que Só Acontecem no Japei
Travessia
Roberta Mathias é Especializada em Cultura e Filosofia e Mestre em Filosofia. Desde 2014, é pesquisadora na área de Antropologia Urbana estudando sobre periferias latino-americanas e suas representações. Doutoraranda PPCIS/UERJ
Textos Jorge Cruz:
25 Anos
Abate
Até a China
Cineclubismo na BF
Eu, Minha Mãe e Wallace
Férias para Sempre
Maria Adelaide
Não me Prometa Nada
O Olho do Cão
Queda D’Água
Saudades de Amélia
Jorge Cruz Jr. é Advogado e graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
Assista ao Apostila Convida #006, que entrevistou Rafael Texeira, um dos organizadores e curadores da Mostra Outro Rio:
Se preferir, ouça o Apostila Convida #006 em formato podcast: