Leia a crítica e assista entrevistas especiais sobre Música para Quando as Luzes se Apagam.
Assista ao Apostila Convida #57, que recebeu Julia Lemmertz e Ismael Caneppele:
Sinopse: Uma autora (Julia Lemmertz) chega em uma pequena vila no sul do Brasil, com a intenção de transformar a vida de Emelyn (Emelyn Fisher) em uma narrativa ficcional. Quanto mais a autora provoca Emelyn com suas câmeras, mais Emelyn se torna Bernardo, um adolescente dividido entre viver o seu desejo e continuar desejando.
Direção: Ismael Caneppele
Título Original: Música para Quando as Luzes se Apagam (2017)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 10min
País: Brasil
Narremos Todes
A atemporalidade de uma boa diz muito sobre o nosso tempo (e dirá sobre o que veio antes e o que virá depois, claro). Mas é o atemporal como resultado de um tempo. Pode parecer paradoxal, mas é apenas a fuga de uma lógica padronizadora. Somente uma, das inúmeras formas de rompimento que “Música para Quando as Luzes se Apagam” providencia. Um realizador com experiência em textos inquietantes estreando na direção. Uma das mais premiadas atrizes do cinema nacional dos últimos vinte anos. Um personagem que surge para aumentar a carga documental que, convenhamos, toda realização tem. Assim como a dose de ficcionalidade.
Confluências que poderão ser testemunhadas no circuito comercial brasileiro a partir do dia 22 (com uma exibição online gratuita em janela de 24 horas, das 18h de amanhã, dia 17 de julho às 18hs de domingo – com o acesso publicado no perfil oficial do filme no Instagram).
O longa-metragem atravessou o tempo e veio nos encontrar no Brasil fascista, corrupto e sem vacina para todos de meados de 2021. Ismael Caneppele o fez em texto inicialmente, assim como suas adaptações mais conhecidas, como “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009) e “Verlust” (2020), que a Apostila de Cinema revisitou e assistiu no ano passado. Na entrevista que ele nos concedeu disse que o viés documental era algo inegociável. Uma carga representativa pela visão de Emelyn Fischer, desenvolvida em uma produção que durou dois anos. No caminho, a contribuição de Julia Lemmertz, em um olhar e um performar exploratório, que ataca direto o ofício o qual domina.
Em uma época de imagens ressignificadas, partindo de revisitação de memórias, “Música para Quando as Luzes se Apagam” se apresenta como uma obra produtora de memórias. Em fluxo coletivo, pela contemplação virtuosa de um cineasta que sabe dosar uma narrativa de estranhamento e politizada – mesmo que aqui ele pulverize essa narrativa. Mas também ao transformar Emelyn e Julia em agentes ativos, criadorxs, transformando todas as etapas em um longo processo democrático, comunitário, coletivo – contrariando o governo ora estabelecido.
Tudo no filme foge da binariedade. Não apenas quando Bernardo ocupa os espaços – ao mesmo tempo que parte de suas representações nos permite propor (a nós mesmos) interpretações. Por que o jovem que joga bola com os garotos na quadra não pode patinar com seu vestido e um collant naquele mesmo ambiente? Por que a jovem não pode se apaixonar por ela? Por que uma carga interpretativa sobre o agir, ou o mero olhar do outro, soa tão fundamental para as nossas vidas?
Ouça a versão em podcast do Apostila Convida #57:
Ao trazer Lemmertz como uma mulher em pesquisa para construir um personagem para seus escritos, Caneppele mostra que não há como definir regras se a única saída para a sobrevivência é ser contra elas. Uma sociedade que não lhe respeita, que coloca em risco a sua vida – como disse a talentosa Juliana Antunes também em entrevista à Apostila de Cinema: “saí da minha cidade para continuar viva“. Assim como o pai de Emelyn, que teme o que acontecerá a ela, por mais que ele ame incondicionalmente sua filha. E não deveríamos impor condições para amar, de fato.
A participação de Julia é mais uma bem-vinda comunhão de um rosto conhecido da produção nacional em um projeto ousado, fora da curva. Assim como aconteceu, dentre outros, com o elenco de “Sofá” (2019), de Bruno Safadi. Temos aqui mais um exemplo do cinema brasileiro contemporâneo que se livrou das amarras de linguagens pré-definidas, de autoimposição de meios e formas. Carregado de mensagem e de revisitar a mente de quem o realiza, como em “Limiar” (2020) de Coraci Ruiz – ao mesmo tempo transbordando imagens poderosas, como “Ambiente Familiar” (2018), de Torquato Joel. Todas essas obras, em certo grau, repensam o conceito de família – e por consequência de indivíduo. E deixam a certeza de que a arte brasileira contemporânea é um vasto campo de exploração.
Portanto, não busque classificações porque, como já dissemos, nada no filme é binário. Esqueça a divisão entre ficção e documental. Comercial e artístico. Convencional e experimental. Profissional e caseiro. Viaje na câmera observadora de Ismael, nas iniciativas de Julia e Emelyn. Consuma os detalhes – e as coincidências que o destino cria para nos entreter, como a blusa do The Cure como parte do figurino de um filme que assisti imediatamente após gravar com Roberta Mathias um programa sobre o Festival do Rio de 2021 em que, ao falarmos sobre “Verão de 85″ (2020) de François Ozon, usamos a mesma banda como argumento sobre a dubiedade de uma geração que se formou naquela época.
Ou seja, “Música para Quando as Luzes se Apagam” consegue ser atemporal e saudosista. Música para os nossos olhos, na exploração de suas representações. Realizado nas incertezas pós-golpe, lançado em um fascismo de mais de meio milhão de corpos empilhados. Enquanto não estivermos todos vacinados contra o ódio, Fernando não terá um dia de paz.
Veja o Trailer: