Sinopse: Em meio a uma rotina dura vivida entre as jornadas para o trabalho como vendedor de tecidos e o cuidado com sua família, incluindo o filho adotivo com deficiências, Nasir não deixa de sonhar com um futuro mais confortável, enquanto escreve cartas de amor para a esposa e declama suas poesias. Só que Nasir (interpretado por Koumarane Valavane) também é um muçulmano, vivendo num país cada vez mais dominado por uma latente intolerância com suas minorias religiosas. O auto-didata Karthick filma com atenção os ritmos da vida cotidiana e a maneira insidiosa como a realidade social pode sufocar as existências humanas.
Direção: Arun Karthick
Título Original: நசீர் (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 19min
País: Índia | Holanda | Cingapura
Não me Ensina a Morrer
Cores, imagens. “Nasir“, produzido com auxílio do fundo Hubert Bals e vencedor do Netpac Award (prêmio dedicado às produções asiáticas), ambos relacionados ao Festival de Roterdã, parte da diferença entre a Índia idealizada pelo olhar estrangeiro (com foco na região de Tamil Nadu e seus grandes templos hindus) e a rotina de um povo que vende cores como se elas refletissem ou reduzissem a complexidade de uma nação. O cineasta Arun Karthick, então, provoca essa aparente contradição a partir da história de um homem (personagem-título, vivido pelo ator Koumarane Valavane) que passará alguns dias sem a esposa – que viaja para um casamento da família. Em casa, seu filho Iqbal apresenta transtorno de espectro autista e passa parte do dia colorindo desenhos.
O diretor também é responsável pelo roteiro, livremente inspirado no romance de Dilip Kumar “A Clerk’s Story” (sem tradução em português, mas que significa literalmente A História do Balconista). Expoente da língua tâmil, o escritor é considerado um dos grandes contistas que usa aquele território como objeto de suas obras (tal qual a Dublin de James Joyce). Livreiro aposentado, deve sentir orgulho de um realizador que, em seu segundo longa-metragem, leva a região do país e esse idioma (oficial em Tamil Nadu) para festivais de destaque no calendário mundial.
O protagonista se divide entre os cuidados com a casa e seu trabalho em uma loja de tecidos. Sua vida funciona como um relógio, diversas vezes um objeto que a montagem se vale. Com um primeiro ato totalmente imerso na vida privada de Nasir, Karthick nos traz, com uma fotografia terrosa e ambientes melancólicos o oposto da Índia de Bollywood. Ela surge apenas dentro daquele estabelecimento, apresentado na trama em uma bonita cena. Há uma transição para o mundo de cores, tal qual conhecemos, no momento em que o personagem abre o comércio. O portão vinho traz a quebra gradual, para, logo adiante, nos revelar o dourado, os verdes e azuis vibrantes, o amarelo e o vermelho das diversas estampas. Vestindo o manequim, ele traveste essa Índia exótica que muitos esperam enxergar.
O espírito de uma sociedade tende a ser moldado e “Nasir” lida muito bem com essa proposta. Não se perde em devaneios imagéticos e traz momentos que, apesar de curtos, contribuem para um aparente zeitgeist imutável e imposto àquela nação. Por sinal, muito parecido com a proposta de orgulho nacional que identificamos no Brasil. Ao atender os clientes, a uma jovem de roupas mais sóbrias, são oferecidos vestidos coloridos. Para uma senhora adepta ao estilo tradicional, formas de ser menos chamativa. Estamos sempre tentando costurar relações, impor em forma de conselhos o que achamos que o consciente coletivo entende certo.
A tentativa de manter sob controle a imparcialidade educacional se reflete nos uniformes totalmente brancos na sequência em que Nasir leva um lanche ao seu sobrinho na escola. Porém, ao cruzar as ruas daquele território, chama a atenção uma rádio comunitária. Nela, a pregação de um representante da religião hindu começa tecendo severas críticas a quem critica sua dogmática. Aos poucos, identificamos uma tensão maior entre essa manifestação de fé hegemônica daquele espaço e o islamismo. Até que a trama nos leva para um lado que realmente foge das representações enviesadas, abrindo debate sobre um grupo que deseja fazer valer a sua identidade, as suas referências, tal qual o Irã do final da década de 1970. Uma escalada de conflitos entre muçulmanos e hindus que o audiovisual popular festivo do país ignora ou romantiza – enquanto do lado de fora das salas vidas são perdidas.
Sendo assim, o longa-metragem deixa de ser uma batalha de cores ou ausência delas. Supera a mera narrativa de um homem que não se decide pelo conformismo ou insatisfação. Ele segue seu relógio e as demandas que cada novo dia lhe traz. “Nasir” nos leva a questionar se um país com crescimento populacional exponencial e mais acesso à informação não verá mais adiante sua unificação ameaçada. Podemos sempre ser vítimas de nossas escolhas, mas até que ponto aquele homem, de fato, chegou a ter esse poder – ou foi invariavelmente lapidado por uma tradição e seu crime foi, apenas, não ousar questioná-la.
Clique aqui e visite a página oficial do Olhar de Cinema.
Clique aqui e visite nossa categoria do Festival Olhar de Cinema, com todos os textos.