No Ritmo do Coração

No Ritmo do Coração CODA Filme Crítica Poster

Sinopse: Em “No Ritmo do Coração”, Ruby é a única pessoa com audição em sua família. Quando o negócio de pesca da família é ameaçado, ela se vê dividida entre seguir seu amor pela música e seu medo de abandonar seus pais.
Direção: Siân Heder
Título Original: CODA (2021)
Gênero: Drama | Musical
Duração: 1h 51min
País: EUA | França | Canadá

No Ritmo do Coração CODA Filme Crítica Imagem

Filha do Silêncio e da Música

É comum alguns dos destaques do Festival de Sundance, que ocorre no início do ano nos Estados Unidos, serem levados até a cerimônia do Oscar do ano seguinte. E também é comum que saia de lá algumas das maiores injustiças, já que obras são esquecidas na temporada, sem que seus estúdios e distribuidoras façam grandes campanhas de engajamento. Acho difícil que a Apple não coloque grandes fichas na mesa com “No Ritmo do Coração“, um dos filmes mais emocionantes que chegaram no circuito este ano, até então. Se a Academia não fosse compulsiva em premiar atuações no estilo Show dos Famosos, em cinebiografias pensadas para isso, anteciparia torcida para que uma das indicadas em 2022 fosse a jovem Emilia Jones.

O longa-metragem saiu de Sundance com quatro troféus na competitiva ficcional: filme, direção, prêmio especial do Júri e escolha popular. Ou seja, chegou chutando a porta e fez a empresa da maçã adquirir seus direitos de distribuição por 25 milhões de dólares – aumentando os indícios de que puxará o projeto pelo braço até o dia 27 de março de 2022, quando as estatuetas serão entregues. Já atriz se preparou quase um ano para o papel, desde a linguagem de sinais até as aulas de canto, passando por um laboratório para conhecer a rotina de um barco de pesca.

Ela é Ruby Rossi, a única de sua família que não é surda. Portanto, é considerada CODA (Children of Deaf Adults), o título original do longa-metragem – e que também é um símbolo que demarca o final da partitura de uma música. Seu pai, Frank (Troy Kotsur), e seu irmão, Leo (Daniel Durant), possuem um pequeno barco de pesca. Assim como boa parte dos autônomos da baía local, são explorados pelo comércio monopolizado na figura de um comprador, que coloca os preços bem abaixo do que os produtos valem. Para os Rossi há um agravante, já que toda negociação é complicada, geralmente intermediada pela adolescente.

A protagonista teve dificuldades nos primeiros anos na escola. Afinal, demorou mais a falar e quando o fazia verbalizava com menos fluidez. Isso gerou um processo de bullying dos colegas que culminou com problemas de sociabilidade. Em seu último ano ela decide se matricular no coral e descobre o talento para a música, através do professor interpretado por Eugenio Derbez.

O equilíbrio de representações é o destaque em “No Ritmo do Coração“. A diretora e roteirista Siân Heder (em nova versão de “A Família Bellier“, produção francesa disponível no Telecine) faz a condução de emoções como o cinema norte-americano consegue nos seus melhores projetos. A comédia situacional é a primeira a surgir, na cena em que Frank e a esposa, Jackie (Marlee Matlin) são atendidos por um médico após uma infecção nas partes íntimas. O tipo de momento em que uma filha adolescente daria tudo para não estar, ainda mais na condição de tradutora. A forma desapegada e liberal da família Rossi esconde uma espécie de dependência da menina. Ela é a ponte, o elo de integração entre eles e a sociedade, que não faz nenhuma questão de ser inclusiva.

Haverá o romance tradicional e, claro, o dilema. Só que aqui estamos diante de uma questão que o destino não conseguirá resolver de maneira tão simples, o que torna o arco dramático mais convincente, envolvente e tocante na parte final. O sonho de seguir para uma faculdade conceituada na arte musical esbarra nos planos do pai e do irmão de desenvolver uma cooperativa que dará mais autonomia aos trabalhadores. Ruby é uma moça que se conformou com a falta de perspectiva de uma mudança de vida, algo que move os desejos de um adolescente. Quando ela olha pela janela e vê um mundo de oportunidades, abstraí-lo em um processo que fará tudo escorrer pelo ralo é extremamente doloroso.

A direção e a montagem se colocam de forma inspirada em “No Ritmo do Coração”. A interação familiar exige cortes difíceis, precisando intermediar o final das frases de um e a reação do outro – algo que se resolve da forma simples quando a palavra pode deixar o emissor no segundo plano. A cineasta consegue fazer isso até em sequências complexas, em que os quatro se posicionam distantes. Já o uso do som guarda algumas surpresas, das mais emotivas, que não desenvolveremos porque quanto mais o público viajar pelo desconhecido, mais será tocado pela trajetória daquela família.

A ideia de um audiovisual inclusivo não é nova e a presença da atriz Marlee Matlin é a prova. Ela, que venceu o Oscar em 1986 com apenas vinte anos, tem uma longa carreira desde que “Filhos do Silêncio” – inesquecível romance estrelado por ela e William Hurt – ganhou os cinemas. Entretanto, vivemos uma fase em que a criatividade de realizadores colocou a questão como parte da narrativa, sem que isso seja o único aspecto.

Seja em “Um Lugar Silencioso” (2018) e no melhor filme dentre os concorrentes ao Oscar de 2021, “O Som do Silêncio” (2020) – ao lado de “Bela Vingança” (2020) – que ficou do lado “dos que permaneceram” em Sundance ao lado de “Minari” (2020). Já a comédia “Palm Springs” (2020) e o excepcional “Nunca Raramente Às Vezes Sempre” (2020) ficaram pelo caminho. Assim como em 2019, “The Last Black Man in San Francisco“, esnobado pela Academia e até hoje inédito no Brasil – e minha eterna indicação.

Entretanto, vale mencionar a crítica da comunidade surda para a versão original, que escalou atores ouvintes para os papeis – uma atitude comparada ao blackface da primeira metade do século passado. Uma falha grave de representatividade reparada na adaptação norte-americana. O filme é um teen movie musical, que explora o talento de Emilia tanto nas canções, quanto na pele de uma mediadora social que vive os seus dramas adolescentes. Na cena mais íntima entre ela e a mãe, o diretora Siân Heder tira todas as interferências sonoras. Dali em diante o filme promoverá mais de um momento de pico, com mudanças de perspectivas na apresentação final da escola à quebra de expectativas na cena que decidirá seu futuro.

São raras as obras que me pegam na emoção sem ser pela tristeza (não lembro se já chorei de alegria alguma vez na minha existência). Porém, o que o filme consegue construir de empatia, sem deixar de divertir e trazer as suas mensagens para além da relação pessoal do espectador, o torna um daqueles que poderia rever assim que os créditos acabassem. Pena que há um mundo de lançamentos (repetitivos) me esperando por dever de ofício. Mas, se tenho uma certeza nessa temporada de premiações que se inicia é a de que não chegarei ao final dela sem ter assistido mais uma vez “No Ritmo do Coração“.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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