Sinopse: Um crime real, um assassinato múltiplo de uma família que terminou com a execução do assassino, o que permite ao diretor a desmistificação de alguns tabus ideológicos e um exame cuidadoso as condições sociais que permearam esse crime. “O Chacal de Nahuheltoro” é baseado na vida do assassino José del Carmen Valenzuela Torres.
Direção: Miguel Littin
Título Original: El Chacal de Nahueltoro (1969)
Gênero: Drama Biográfico | Crime
Duração: 1h 29min
País: Chile
Emoção com Ar de Proclamação
“O Chacal de Nahueltoro“, que abre a retrospectiva na Mostra de Cinema Latino-Americano sobre a carreira de Miguel Littín, foi o primeiro longa-metragem do cineasta chinelo. Quatro anos antes ele havia filmado o documentário em curta-metragem “Por la Tierra Ajena“. Apesar de trazer na ficção – contando com um grande trabalho de atuação de Nelson Villagra – a perspectiva do olhar não engana: estamos assistindo ao nascimento de uma carreira que, mesmo pelo caminho da liberdade artística, prima pela reconstituição dos fatos.
Apresentado no Festival de Berlim de 1970, o roteiro da obra usa como base os autos do processo que condenou José del Carmen Valenzuela Torrès (o Chacal) à morte por fuzilamento, em um dos casos mais famosos do Chile na década de 1960. Bem parecido com o expediente utilizado na adaptação do caso Richtofen, que segue sendo adiado pela distribuidora no Brasil, esperando tempos melhores. Narrativas de crimes reais costumam atrair interesse do público, não apenas para as salas de cinema. Basta lembrar de nosso texto sobre “Wilsinho Galiléia“, apresentado pela TV Globo nos anos 1980 e traçar paralelos com programas que unem jornalismo e sensacionalismo contemporâneos.
Isso é tudo que Littín evita em “O Chacal de Nahueltoro“. Ele usa a linearidade, mas sem uma escalada de violência. Tanto que o assassinato da mãe e suas seis filhas, o acontecimento-chave, não é deslocado para polos da obra. A origem de Valenzuela é o que abre o filme, no capítulo denominado “A Infância de José”. Há muito do audiovisual que se desenvolveu na década de 1960 no Brasil, extensível à América Latina. Ao lado de Raúl Ruiz, Miguel inaugura nesse período o denominado “Novo Cinema Chileno“. Uma união das vanguardas europeias com uma linguagem marginal, com forte uso da trilha sonora. Este é o grande elemento cortante na trama, aquele que dá a maior carga de tensão. Contudo, ao se permitir ser mais documental na abordagem, o cineasta provoca sensações pelo uso da câmera, um olhar que usa a perspectiva do Chacal como ferramenta.
Em alguns momentos, Littín faz isso de forma brilhante. Antes de sabermos que o grande argumento do réu-confesso é depositar nos efeitos do álcool as suas atitudes, o diretor faz uma longa sequência no bar. Com muitos cortes, traz a percepção de confusão de quem passa a enxergar a vida em flashes. Só que, ao mesmo tempo em que usa essa estética a favor da narrativa, ele não deixa ser der também documental. Nos dá informações que aproxima a cena de uma reconstituição criminal, de fato. Closes em várias pessoas, em objetos e, principalmente, letreiros. A câmera na mão inquieta e o senso de urgência permite essa dupla via de interpretação e percepção – como se estivéssemos, ao fundo, folheando mesmo os autos do processo.
Essa inquietude se repete quando as vítimas entram em cena, são mostradas sem um foco específico. Todas elas se apresentam a todo o tempo, seja por vozes foram da conversa ou pelo choro das crianças menores. Claro que há uma preparação da linguagem para dar mais força ao massacre brutal que seguirá adiante, mas esse equilíbrio entre a frieza da análise e a emoção é difícil em produções do gênero – e Littín alcança com naturalidade. O assassino planta evidências confusas, tenta fugir para a Argentina pela zona das cordilheiras e acaba capturado. No único momento em que a montagem transita pelo passado do Chacal, há uma ligeira humanização do protagonista, principalmente pelo abandono familiar e sua adoção por um representante do Exército. Com o passar dos anos, um culto à imagem de Valenzuela foi percebido no país, acreditando em milagres a ele atribuído.
Isso porque seu caso foi amplamente discutido na sociedade chilena. Acreditava-se que a condenação à morte não atingiria o grande objetivo da punição pela Justiça: a da reabilitação. Clamores pela conversão da pena em prisão perpétua foram em vão e, perto da data do fuzilamento, José se arrependeu de seus atos e se converteu ao Catolicismo. Pormenores (ou não) que saíram do foco do cineasta na narrativa – mas estão ali, com o perdão da repetição do termo, documentados. A parte final do longa-metragem, que se passa na prisão, começa com mais uma grande cena, em que o Chacal entre na penitenciária e a câmera faz as vezes do seu olhar. Ali a obra começa a seguir um caminho mais ritualístico, escapando para o documental poucas vezes, quando simula o depoimento de um padre (provavelmente Eloy Parra, que o acompanhou nos últimos dias) e do líder do pelotão de fuzilamento. Um ritual de morte, que envolve, inclusive, as intenções dos modernos carrascos.
Esse novo cenário e as relações criadas nesses momentos, garantem na outra ponta de “O Chacal de Nahueltoro” uma outra dose de humanização, é verdade. Porém, mantém o cineasta fiel sua intenção de ser uma versão oficial e sem julgamento que escape do que o Estado entendeu como a trajetória de vida do personagem. Com o passar do tempo, novas leituras possíveis sobre o biografado trouxeram outras possibilidades de compreensão deste filme. Com isso, novas obras sobre o Chacal ganharam vida – assim como toda a filmografia de Miguel Littín ganhou forma, como veremos ao longo desta semana. Eles se separaram enquanto criador e criatura, mas o longa-metragem permaneceu uma referência tanto para o estudo do caso quanto para os trabalhos seguintes do diretor.
Veja o Trailer:
Clique aqui e leia críticas de outros filmes de Miguel Littín.