Sinopse: Em “O Discípulo”, a dúvida, o sacrifício e a luta convergem em uma crise existencial para um vocalista clássico devotado, já que a mestria pela qual ele se esforça permanece indefinida.
Direção: Chaitanya Tamhane
Título Original: The Disciple (2020)
Gênero: Drama | Musical
Duração: 2h 9min
País: Índia
Andar (Só) Com Fé
“O Discípulo” é daquelas produções que chegam sem alarde ao catálogo da plataforma de streaming Netflix e que ficamos torcendo para que o boca-a-boca amplie seu alcance. Sabemos que é difícil. Não há aqui o mesmo apelo sentimental de “Filhos de Istambul“, produção turca sucesso de audiência (e de haters) na Apostila de Cinema. O jovem cineasta Chaitanya Tamhane, de apenas 34 anos, não usará artifícios como um plot twist manjado ou ferramentas que “joguem para a galera”, induzindo uma comoção. Aqueles que buscam o caminho fácil franzirão suas sobrancelhas e aplicarão um olhar tradicional e culturalmente afastado sob a obra, o que tirará a força da experiência.
No último Festival de Veneza a receptividade foi coerente com as representações criadas no musical mais diferente que poderemos assistir em anos. O realizador saiu da Itália com dois prêmios: de melhor roteiro e o da crítica, concedida pela FIPRESCI. Toronto e Lisboa também laurearam o longa-metragem, que figurou ao lado de “Bacurau” como indicado a filme internacional no Independent Spirit Awards. A presença do mexicano Alfonso Cuarón na produção executiva deve ter sido uma grande porta de entrada para a obra, que esperamos que renda novos projetos para Tamhane em breve.
O idioma do filme é a língua marata, predominante em uma das áreas mais populosas e desenvolvidas da Índia, que tem em Bombaim seu centro urbano. Acompanharemos Sharad Nerulkar (Aditya Modak), um aspirante a cantor que vive um dos grandes dilemas do início da fase adulta: por mais que ele se esforce e pratique, não possui o dom do ofício que deseja exercer.
Tamhane traz uma profunda narrativa de imersão. Os primeiros minutos primam pelas apresentações artísticas, com algumas quebras que mostram certos espaços tradicionais daquele território. Em uma delas, uma loja de kurtas, vestimenta típica daquela sociedade. Ao contrário de Arun Karthick em “Nasir“, outra boa produção indiana do ano passado e que parte desse uso das cores e tem nos tecidos um interessante elemento de ligação, aqui seremos levados mais pelo som, que não apenas ditam o ritmo, mas demarcam o grande choque cultural com o público do Ocidente.
Tudo o que circunda a obra é carregada desse tradicionalismo, mas o que chama a atenção é a música clássica, as ragas. Uma manifestação que transcende a arte pela arte, prima por uma busca espiritual, um encontro consigo, uma transcendência. Nesta proposta, o protagonista é treinado por Guruji (Arun Dravid), um ancião que tenta auxiliá-lo a atingir as notas – só que para isso apenas a disciplina não é o suficiente. Nas sequências musicais, o diretor opta por uma câmera parada, que nos coloca enquanto observadores. Não busca dinamizar a construção de história, a ideia é de convivência com aquele jovem de 24 anos, que busca o sucesso.
Depois que as bases da narrativa se formam, “O Discípulo” desenvolve suas relações. O mestre Guruji começa a sofrer as consequências do tempo, a única luta que todos sabemos que perderemos um dia. Parece que vivemos um jogo, uma troca de conhecimentos. Sharad ainda não parece disposto a desistir e conforme somos levados a olhar de forma mais humanizada ao senhor que o guia, conseguimos receber enquanto possibilidade um final diferente do que a lógica diz.
O protagonista não chega ao ponto que deseja porque sua mente precisa transcender, é um trabalho espiritual. Contudo, o desejo do sucesso – e as ferramentas contemporâneas – faz com que seus esforços se dividam. Ao mesmo tempo em que a possibilidade de captar e distribuir pelas redes sua apresentação dá um poder de alcance, Sharad está mais exposto às imperfeições. Algumas delas aplicadas pelo olhar apurado de Guruji. Este é o grande elemento atualizado da obra, que usado com economia na narrativa, acaba se destacando.
No meio da era da informação, o personagem aos poucos vai lidando melhor com seus limites. Claro que, enquanto analista com zero conhecimento sobre a música clássica transcendental indiana, não possuo condições de atestar “qualidade” no que é representado. Contudo, no que há de universal em “O Discípulo“, estamos diante de um grande trabalho de Chaitanya Tamhane. Além das amarras da própria capacidade de Sharad, temos uma história sobre a juventude se esvaindo.
Uma projeção de futuro que escorre pelo ralo, sem que possamos apontar culpados. Insensíveis tirarão a carta da meritocracia do bolso. Humanistas exigirão empatia com o conceito de fracasso explorado pelo filme. Um embate que, por si só, vale a pena – e diz muito sobre cada um de nós, no sempre necessário exercício de interpretação, de uma obra que te convida a permanecer dentro dela provocando sentidos e sentimentos.
Veja o Trailer:
Sim! É um filme que, apesar do recorte especifico dentro de uma cultura, faz pensar vários aspectos, inclusive do papel dos mais velhos e daqueles que já se foram. Um bom filme com certeza!