Sinopse: Sergio é um espião chileno. Ou quase isso: ele é convidado a interpretar um depois de audições realizadas por um detetive particular que precisa se infiltrar em um asilo onde um residente possivelmente está sofrendo maus-tratos. Mas, aos 83 e sem ser nenhum 007, Sergio não é exatamente habilidoso com novas tecnologias e técnicas de espionagem. Uma fina combinação de documentário e filme de espião, esta é uma reflexão particular sobre compaixão e solidão.
Direção: Maite Alberdi
Título Original: The Mole Agent (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 30min
País: Chile | EUA | Alemanha | Holanda | Espanha
Adeus às Ilusões
Apresentado no Festival de Sundance 2020, “O Espião“, produção chilena (em parceria com outros quatro países) dirigida por Maite Alberdi, era esperada com muita expectativa por aqueles que bateram o olho na programação do Festival É Tudo Verdade 2020. Uma obra que, além de trazer ao seu centro a própria forma de fazer artístico, construindo um diálogo direto com a refundação do gênero documental, emociona. Para uma parte do público, talvez somente isso baste. Uma emoção que foge de sensacionalismos comumente praticados em filmes como esse. Provoca pela sensibilidade e por nos tornar observadores de um mundo a qual renegamos, que muitos não querem lembrar que existe, principalmente quando envolve um dos seus.
Não era tão jovem quando uma pessoa próxima residiu em uma habitação para idosos. Minha avó, que morava no mesmo prédio, foi internada lá (poderíamos dizer hospedada para amenizar o fato), após uma difícil decisão – a qual não julgarei, mesmo com a libertação que temos quando não somos nós os responsáveis por essa escolha. Ao me transportar para a obra de Alberdi, me veio a mente não apenas o que ela mostra – mas, sobretudo, o que ela não mostra.
Quem chega aqui após ter lido a sinopse de “O Espião” já sabe que o documentário nos mostra um senhor que, após um processo seletivo, será um interno de uma dessas habitações para idosos. Ele entrará em contato com seu parceiro de espionagem mais jovem, que seguirá no escritório. Para isso, precisa se reeducar para aprender a mexer com a tecnologia atual, com captação de imagens e de som e o envio dos arquivos. A cineasta aqui desenlaça um paradoxo que parecia impossível no projeto de um filme que quer mergulhar naquele território sem que as pessoas ali representadas não maculem o próprio discurso.
A vida solitária e carente de um asilo (vamos usar essa palavra, já não precisamos disfarçar) seria magicamente transformada com a chegada de uma equipe de produção em seu objetivo de ouvir os senhores e senhoras que lá estão. A diretora nos prova isso de início e provavelmente deverá ter horas de materiais imprestáveis para um longa-metragem que se propõe a ser cru, cheio de depoimentos fantasiosos e saudosistas. A genialidade de se colocar alguém infiltrado no ambiente só não é maior do que tecer uma trama que torne a experiência de assistir ao filme um prazer diferente daquele experimentado no restante da programação do festival. Talvez conseguimos chegar perto do que é “O Espião” apenas em “Meu Querido Supermercado“, pela inventividade, processo de construção e de busca narrativa, além da aplicação da linguagem audiovisual com múltiplos objetivos.
Na intimidade recente e na curiosidade aguçada de conversar com um novo colega, os internos reclamam da solidão, da família que não os visita, da dificuldade de socialização – os tornando mais reflexivos. O agente, por vezes, traz o distanciamento para equilibrar o que é um questionamento válido de outro que pode ser creditado aos problemas de memória. Há quem busque novos relacionamentos, apesar de lá morar há mais de vinte anos. Aos poucos Alberdi vai ampliando a melancolia debruçada na obra, porque nem o melhor espião conseguiria manter um distanciamento que não o tornasse mais um daqueles que habitam aquele espaço.
Pois é aqui que “O Espião” me toca pelo que não mostra: o distanciamento. Morar em um asilo é conviver com um constante processar desses distanciamentos. Ao visitar minha avó duas vezes por semana, dois deles me chamavam muito a atenção. O primeiro é aquele que já trouxemos mais acima, o da sociedade. Com quatro netos, nenhum dos outros três sequer a visitou em dois anos de internação. Um chegou a me levar na porta, esperar que eu entregasse algumas coisas a ela, para seguir adiante. Ali, de fato, é um território que muitos evitam. Não por medo, pena ou indiferença para com o outro. Evitam porque não há como não projetar em si mesmo aquelas pessoas. Como reagiríamos ao chegar perto do fim da vida e morar em comunidade, com seus regramentos e inacessibilidades? Você seria a senhora introspectiva, que sem dificuldades na memória mas com problemas de locomoção passa os dias triste envolta em sua própria consciência? Seria outra senhora, que caminha dezoito horas por dia, sem demonstrar cansaço, porque seu cérebro não processa mais a fadiga? Ou seria o senhor que, após seis décadas de casamento, passou a morar ali para ficar ao lado da esposa que sequer levanta da cama?
Não, nenhum desses exemplos estão no filme. Nele, há outros. Se chegou a esse texto e não o viu, veja. Se já assistiu, projete em sua mente futuros paralelos àquela aposentadoria recheada de amigos no banco da praça. Porque há outra forma de distanciamento que me toca, a das pessoas que a diretora opta por não tornar objeto de seu documentário: os profissionais de saúde que lá trabalham. Para eles, a frieza de tratamento é uma regra e uma necessidade. No terço final, eles são lembrados porque Maite Alberdi nos aproxima de outra rotina daquele território, a da morte. Constantes despedidas daqueles que, mesmo sem escolher, fizeram parte da nossa última morada. É fundamental trazer para a sua realidade o que está ali representando, até porque estamos ficando cada vez mais velhos e, ao mesmo tempo, mais isolados no mundo. É um caminho que muito de nós terá pela frente.
“O Espião“, além de toda a técnica cinematográfica e busca de narrativa que será gritada a plenos pulmões pela crítica especializada, te traz uma perspectiva valiosa sobre um tema que você passa a vida fugindo – e quando menos espera, esse assunto evitado passa a ser você.
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