Sinopse: Cinquenta anos após a estreia de Morte em Veneza, Björn Andrésen, a antiga estrela adolescente que interpretou o lendário personagem Tadzio na obra-prima de Luchino Visconti, nos conduz em uma jornada em que memórias pessoais, história do cinema, sucesso e tragédias se confundem. “O Garoto Mais Bonito do Mundo” talvez seja a última tentativa de Björn de finalmente colocar a sua vida de volta nos trilhos.
Direção: Kristina Lindström e Kristian Petri
Título Original: Världens Vackraste Pojke | The Most Beautiful Boy in the World (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 34min
País: Suécia
O Menino-Objeto
“O Garoto Mais Bonito do Mundo” retoma a tradição de festivais com grande panoramas audiovisuais de tornar o próprio cinema um dos arcos temáticos de sua seleção. Na 45ª Mostra SP esse documentário sueco, dirigido por Kristina Lindström e Kristian Petri faz parte da Perspectiva Internacional. Ao contrário da edição passada que trouxe uma “versão em vídeo” do livro de Michel Ciment no filme “Kubrick por Kubrick” (2020), o foco aqui é uma figura icônica – e, ao mesmo tempo, misteriosa – para os amantes da filmografia da Luchino Visconti.
Estamos falando do ator Björn Andrésen, intérprete de Tadzio no clássico “Morte em Veneza” (1971). Exibido na competitiva do Festival de Cannes, onde ganhou troféu honorário pelos 25 anos do evento, ficando a Palma de Ouro com “O Mensageiro” (1971) de Joseph Losey, adapta o livro de Thomas Mann sobre um músico que viaja para o balneário italiano e fica obcecado por um lindo adolescente. Exibido no Festival de Sundance de 2021, o início da narrativa do documentário traz a relação de causa e consequência que consistiu a busca do cineasta pela fidelidade da fonte primária.
De forma simples, “O Garoto Mais Bonito do Mundo” constrói seus paralelismos. Visconti via em Gustav (Dirk Bogarde), protagonista de seu filme e do livro de Mann, muito de si. Se envolve com a produção de maneira a deixar claro ser o personagem ficcional seu alter ego (também). Em imagens de arquivo, acompanhamos a viagem dele a Estocolmo para encontrar a imagem masculina que representasse a perfeição. Como forme de reproduzir a estética do belo, gestada pelos gregos há séculos e que ainda deixa boa parte de críticos e analistas presos a essas amarras, ele vê em Björn a materialização dessa proposta. Por óbvio, tudo o que circunda o aspirante a ator auxilia na escolha. Órfão, ele é criado pela avó, que parece pouco disposta a resistir a qualquer proposta de futuro para o menino, por mais que isso torne nebulosa algumas relações.
No presente, Andrésen se mostra como alguém impactado, até hoje, pelo estrelato forjado sem qualquer autonomia. Tudo em volta dele parece romper com qualquer ideia de beleza – e de ordem. Sua casa é caótica, com objetos acumulados e muita sujeira. Ele conta que, quando jovem, seu sonho era desenvolver seu dom na música e mostra ser um exímio pianista. Porém, ao ser vendido como o garoto mais bonito do mundo, assistiu Visconti perceber o risco de sexualização e protegê-lo de todas as formas no set. Aliás, a estética do belo em “Morte em Veneza” é uma proposta que vai muito além da figura de Tadzio – e a montagem de Hanna Lejonqvist e Dino Jonsäter aqui, pinçando algumas das grandes imagens do diretor, nos induz a essa reflexão.
Todavia, por mais que protegesse o adolescente, a receptividade em Cannes no início da década de 1970 o transformou em ícone instantâneo. Atirado à fogueira das vaidades com status de paradigma de beleza, seus traços inspiraram até a forma como alguns mangás representam essa estética. Inclusive pelo viés da maldade, já que o exemplo do filme é muito parecido com a maneira como Masami Kurumada apresenta Afrodite e concentra em si um poder supremo legitimado pela imagem na leitura de “Cavaleiros do Zodíaco”.
Porém, trata-se da referência da referência. O vínculo direto a Tadzio é mostrado em “Rosa de Versalhes“, criação da autora feminista Riyoko Ikeda um ano após o lançamento do filme – e até hoje relevante para a cultura shojo e tudo o que foi produzido nos mangás nos anos posteriores. Por sinal, vale o parênteses de que – ao lado de “As Bruxas de Oriente” (2021), temos aqui o segundo filme que traz impactos culturais dessa manifestação artística em diálogo com seu momento histórico, em um sinal de que – por décadas – essa linguagem artística foi vilipendiada fora do Japão.
Há momentos em que “O Garoto Mais Bonito do Mundo” quer reinventar a exploração do belo pelo olhar da câmera. Ao mesmo tempo, ousa investigar o passado de seu protagonista pela identidade dos pais e como ali reside a gênese de uma vida cheia de questões mal resolvidas. Björn assumiu os bônus de ser uma figura objetificada e, depois, não lidou bem com os ônus. Algo que se refletiu até em sua relação com a filha e de um afastamento da vida pública que aparente intuito de evitar a renovação de traumas.
No mais, traz de forma residual sua participação em “Midsommar – O Mal Não Espera a Noite” (2019) que torna sua cena ainda mais emblemática no filme de Ari Aster. Parte da nossa descartabilidade na sociedade guarda muita relação com a beleza. Na vida real, o eterno Tadzio optou por pular de cabeça daquele penhasco bem mais cedo do que se imaginava.
Veja o Trailer:
Boa lembrança de como o cinema marca artistas novos e até mesmo se aproveita deles. A maneira como Morte em Veneza marcou a vida do cinema, também marcou a vida do intérprete de Tadzio. A forma em como Visconti abusou da imagem de Björn é extrema e chocante.
É uma obra íntima que reúne sentimentos e experiências, cuja beleza e imagem foram eternizadas. Realmente vale a pena conferir.