“O Rebanho” chegou ao Telecine. Leia a crítica.
Sinopse: Selah (Raffey Cassidy) é uma jovem nascida em um culto repressivo conhecido como “o rebanho”. Todas as mulheres e crianças vivem em um complexo rural e são liderados por um homem, conhecido apenas como “Pastor”. Selah recebe a grande honra de participar do ritual sagrado do nascimento dos cordeiros, do qual o rebanho depende para sobreviver. Durante a cerimônia, ela passa por uma experiência chocante. A adolescente começa a ter visões estranhas que a fazem questionar sua própria realidade, e tudo o que o Pastor a ensinou.
Direção: Małgorzata Szumowska
Título Original: The Other Lamb (2019)
Gênero: Drama | Horror
Duração: 1h 36min
País: Irlanda | Bélgica | EUA
Capitão Pastor
Chegou esta semana ao catálogo do Telecine, “O Rebanho“, uma indicação para quem acaba de terminar a quarta temporada de “O Conto da Aia” (ou “Handmaid’s Tale”) e terá que prender a respiração por longos meses antes que a história June Osborne siga em novos episódios. A roteirista C.S. McMullen (com essas inicias importadas do mundo literário) não esconde muito sua inspiração, nesta produção irlandesa que revisita questões envolvendo o sufocamento da posição da mulher na sociedade pelo viés distópico. Mesmo assim, ultrapassada as semelhanças, há uma dose de criatividade no ato final, quase comprometido pela busca da cineasta polonesa Malgorzata Szumowska, assídua frequentadora do Festival de Berlim, por uma áurea de introspecção.
No ambiente controlado onde se passa o filme, Michiel Huisman é o autodenominado Pastor. Isolados do restante do mundo, ele mantém em cárcere um grupo de mulheres. Uma parte ele chama de esposas e fornece roupas vermelhas. A outra ele chama de filhas, usando vestes azuis. De forma hierárquica, ele “promove” filhas (puras) a esposas – até que elas se tornem impuras demais, momento em que ele as confina para a morte cruel. Uma psicopatia torturante que a vida real conhece desde que a misoginia fundante trouxe a ideia de propriedade aos homens. Não à toa, o cavaleiro (pedófilo e serial killer) Gilles de Rais foi uma das inspirações para a clássica história de Barba Azul.
Se voltarmos às origens da Gileade da criação de Margaret Atwood, não há como não traçar um paralelo com o monte às margens do Rio Jordão, presente em diversos trechos da Bíblia, principalmente no livro de Gênesis. É quanto assume este viés de culpa cristã e às referências ao Cristianismo no ato final, que “O Rebanho” ganha força. O Pastor surge como uma mistura de profeta e própria reencarnação do Messias, com suas vestes alvas, longos cabelos e barba – constituindo uma seita, modalidade que sempre existiu e tende a ser cada vez mais cruel em um mundo dominado pela fluidez de informação e o trânsito de pessoas. A saída continuará passando pela constituição da ideia de divindade, tornando mais crível a maneira dominante como o líder exercerá sua posição de poder. Porém, aqui ele encontra na protagonista Selah (Raffey Cassidy) um pilar de resistência – que não seria a primeira e nem a única.
Ao contrário da abordagem tradicional (e que já deixou de ser no audiovisual mais representativo), Szumowska concentra seus esforços na perspectiva da personagem. Por mais que o Pastor tenha presença forte, assim como os sacrifícios envolvendo animais, em metáforas que atraem o sangue e o horror como elementos da narrativa, o longa-metragem prima pela reflexão da filha e seus questionamentos sobre toda a rotina e motivações por trás de sua vida serem dogmáticas. O sonho da sociedade patriarcal é tornar a experiência de uma mulher assediada como a única possível. Sem trocas, não há resistência. Sem outras culturas, não há sobreposições.
Sendo assim, o Pastor possui o monopólio da experiência, mas também da informação e da mensagem, algo que difere na forma, mas nunca no conteúdo da sociedade ao longo do tempo. Sai a ideia constante de que há algo fantástico naquela comunidade de exceção, como em “A Vila” (2004) e entra a certeza de que estamos assistindo a um microcosmo da realidade. Com relações de poder bem definidas, em uma história de fácil digestão para o espectador moderno, cabe à cineasta explorar a introspecção de Selah. Sem a certeza de em quem confiar e tendo dúvidas sobre seus próprios questionamentos, o desenvolvimento da trama por vezes se excede nesta aliteração visual.
Porém, dura pouco. A montagem do experiente Jaroslaw Kaminski (dos ótimos indicados ao Oscar “Guerra Fria” de 2018 e “Quo Vadis, Aida?” de 2020 – além do recente “Interrompemos a Programação“, de 2021) auxilia na forma mais enxuta de reverberar esta contemplação, como é comum nos projetos em que ele está envolvido. Flertando com o lado de fora, uma bandeira dos Estados Unidos adesivando a janela de um carro é parte de um fluxo que torna a interpretação sobre a obra mais aberta – envolvendo a cronologia das próprias imagens, o passado de Selah (que foi apagado ou nunca existiu) ou uma projeção sobre a realidade.
Quem chegou aqui esperando explicação, saiba que qualquer um que dê a sua intepretação com a ideia de limitar a leitura do filme estará te enganando. Talvez não precise haver um encontro com o real, já que – por trás de sua simbologia – não encontremos muitas diferenças. Como ideia de comunidade, observa-se as práticas de regimes autoritários, que precisam se legitimar e se reafirmar de maneira constante – trazendo os já mencionados monopólios.
Com isso, o Pastor em “O Rebanho” precisa da sua própria Gileade, sua cruzada ao Éden. É sob essa desculpa que o longa-metragem cresce. Pluralizando a visão sobre as imagens, descola um pouco do thriller o qual parecia se transformar, por mais que a única solução para aqueles que usam o privilégio do discurso para construir uma sociedade injusta seja dilacerá-lo, expondo como falso profeta que é. Às vezes, basta apenas uma ovelha negra na família.
Veja o Trailer:
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