Ópera dos Cachorros

Ópera dos Cachorros Curta Paula Gaitán Mostra Tiradentes Crítica

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Sinopse: Percurso da autora Paula Gaitán pelas ruas de São Paulo gravando suas canções e invenções sonoras enquanto caminha.
Direção: Paula Gaitán
Título Original: Ópera dos Cachorros (2020)
Gênero: Experimental
Duração: 15min
País: Brasil

A Luz de Paula

Quando perdeu-se o sentido de entender o cinema como aqueles rolos de filmes gravados em película que nos moviam a um espaço coletivo onde, por algumas horas, dividíamos impressões com estranhos sobre uma história – geralmente de estrutura narrativa tradicional – achávamos que chamá-la de arte audiovisual era o suficiente. Em qualquer contexto prévio à realização de “Ópera dos Cachorros“, a apresentação do novo curta-metragem de Paula Gaitán, exibido na Mostra Homenagem da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, ficaria reservada a um espaço – ao qual chamamos de circuito.

Comercial, alternativo, cult, experimental, nicho. Poderíamos preencher um longo parágrafo de formas de se categorizar uma obra – ou produto. Eu, particularmente, gosto de produto porque gera essa sensação de consumo. Para outras, indica uma descartabilidade ou expectativa de fruição que nos limita. Fica à sua escolha. Fato é que esses produtos (deixa eu chamar assim, só hoje) foram se transformando em todas as suas etapas. A própria pré-produção enquanto fase já remonta a um profissionalismo que os antigos não almejavam – ou não pretendiam.

Contudo, o que muitos chamam de várias mortes do Cinema são, na verdade, transformações. Na mais revolucionária delas (podem cobrar essa afirmação daqui a alguns anos) a etapa de distribuição permitiu que esses produtos chegassem às nossas casas do mesmo jeito. Algo que se acelerou (como várias outras dinâmicas da sociedade) em 2020, com o início da pandemia do novo coronavírus que – sem querer ser pessimista – parece longe do fim.

Sendo assim, é possível que você assista “Ópera dos Cachorros” no conforto da sua cama, luzes apagadas, com um notebook no colo, um fone que reproduz uma ótima qualidade de áudio – e seus pais, ao mesmo tempo, estejam na sala vendo “Soul“, nova animação da Disney/Pixar em uma tela de televisão de 70 polegadas, com o volume alto porque da janela entra o barulho do churrasco do vizinho e a lua acesa. Quem vai comparar as experiências? Quantificar, valorar? É impossível.

Paula Gaitán, então, é uma força que ilumina propostas de um audiovisual brasileiro que já existe, tem uma potência e uma carga histórica do tamanho de Tiradentes, mas sofria horrores em um mercado onde a lógica financeira não quer perder tempo. Quer pautar o consumo e nos dizer quais produtos nos chegam. A Mostra Tiradentes continuará existindo fisicamente, assim como o cinema, mas essa forma de exibição não será temporária. Sem qualquer coincidência, a homenageada dessa edição é Gaitán – que parece abarcar boa partes das vertentes da criação da arte que tanto amamos.

Em “Ópera dos Cachorros” ela rompe mais uma barreira. Não inventa a roda enquanto realizadora, talvez ela mesma tenha construído em sua mente uma obra que retoma escolas experimentais clássicas. A tela preta, tirando a imagem enquanto proposta ou como indução, também não é inédita. Aqui mesmo na Apostila de Cinema assistimos ano passado ao curto e impactante “Sair do Armário“, de Marina Pontes. O que Paula, faz, contudo, é trazer uma expressão ensaística, uma performance que dialoga com as vídeo instalações – algo que pensávamos que só funcionaria enquanto evento, em um contexto que trouxesse a galeria enquanto templo.

Só que a pandemia veio derrubar todas as paredes de territórios e seus significados. É isso ou a morte. É isso ou a piora (ainda maior) da saúde mental. Nossa casa precisa ser sala de cinema, galeria de arte, pista de dança, restaurante, escritório, academia. É isso ou a morte, mas pode ser isso e a morte também. Ou isso ser a morte em vida (talvez para os sagitarianos). Portanto, não há mais tempo a perder porque nos tiraram até mesmo o medo e a insegurança enquanto fase, enquanto momento. Agora eles convivem conosco, em cada zapeada de canal, em cada produto que vem da rua antes de ser higienizado.

“Depois que inventaram a desculpa nunca mais morreu ninguém“, disse Mano Brown há dois anos e meio, mas é impressionante como essa frase se fixou em nossa bolha desconstruída-canceladora. De São Paulo são os sons que compõem o curta-metragem, a nova morada da cineasta. Ela faz uma linha que, alterando sutilmente os barulhos perturbadores, parte de uma cidade industrial para o neurótico e competitivo ambiente. Digo isso com carinho de quem, carioca não-praticante na faixa dos 30 para a vacina, tem um pouco de inveja das possibilidades de anonimato que o paulistano naquela metrópole monstruosa pode ter.

Ópera dos Cachorros“, então, vai trazendo o cosmopolitismo para o centro de sua representação. Uma forma romântica de chancelar a colonização, ao mesmo tempo de lembrar dos imigrantes enquanto desbravadores de novos espaços naquele território. Desbravadores sanguinolentos e genocidas como aqueles que mencionamos em “Caminhos Encobertos”, produção da Sessão 6 da Mostra Panorama de Tiradentes; ou colônias do início do século XX, que contribuíram para a formação do ideário paulistano, ao mesmo tempo que preservam suas manifestações culturais.

Nesse fluxo de vários idiomas sendo ditos, o filme se caminha para o fim com algumas línguas indígenas. Alguma ou algumas – porque é impressionante como foram esses os únicos idiomas que não consegui identificar. Por que sabemos que aquela palavra dever ser alemão, a outra francês ou espanhol e mais uma, sem dúvida, inglês? Porque eles são vistos, ouvidos, a nós mostrados. Já outros são apagados. Paula Gaitán faz do escuro um exercício de iluminação – propagando e divulgando sua arte inédita de uma maneira que há poucos anos acharíamos inimaginável.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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