Operação Camanducaia

Operação Camanducaia Documentário Brasileiro Crítica do Filme Pôster

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Sinopse: Numa mistura dos estilos road movie, investigativo e filmes de diálogos, este documentário busca reconstituir as memórias afetivas e históricas, as motivações e as consequências da Operação Camanducaia, episódio de 1974 no qual a polícia de São Paulo apreendeu de suas ruas e abandonou em Minas Gerais um grupo 93 crianças e adolescentes acusados de pequenos delitos. Antes de ser esquecido, este episódio da ditadura chocou a sociedade e virou um marco da violência policial.
Direção: Tiago Rezende de Toledo
Título Original: Operação Camanducaia (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 16min
País: Brasil

Operação Camanducaia Documentário Brasileiro Crítica do Filme Imagem

Iniciativas Fascistas Sistematizadas

Dentro da mostra contemporânea de longas-metragens da 16ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, as três produções que compõem o recorte curatorial denominado “Passado em Investigação” nos leva a um período próximo da historiografia nacional – e que acaba se confundindo entre si e também se juntando ao presente, como prova de que a sociedade brasileira tem bases fundantes fascistas e de difícil extirpação do nosso convívio. “Operação Camanducaia” coloca uma lupa em um caso que nunca irá repercutir como se deve por pura questão de alinhamento de parte da população a um discurso de ódio e intolerância.

O cineasta Tiago Rezende de Toledo, como bem descreve na sinopse, mistura elementos de um road movie com de obras investigativas. Sua persecução aqui é bem direta: ele deseja elucidar o que aconteceu com 93 crianças e adolescentes levados em 1974 da capital da São Paulo para o interior do Estado de Minas Gerais de forma arbitrária. Mais da metade desses jovens até hoje seguem desaparecidos, em uma prática higienista, típica de uma política fascista, que se mostrou sistematizada por parte do comando em curso no auge da ditadura militar.

O documentário se divide em três. As viagens do diretor nos faz ter acesso às expressões territoriais e a forma como a população de Camanducaia entendeu aquele evento, que marcou a vida de quem testemunhou. Já a investigação nos coloca de frente com autoridades em uma releitura crítica do processo criminal que apurou responsabilidades. E a parte final se aprofunda na tentativa de encontrar alguns dos garotos que fizeram parte enquanto vítimas da chamada “Operação Camanducaia”.

As explanações sobre a ausência de repercussão se mostram tanto na verbalização de olhares afastados de pesquisadores quanto das expressões de quem, até hoje, acha que hierarquizar indivíduos é uma forma correta de proceder. Delinquentes, trombadinhas, dentre outras formas de caracterizar os meninos se apresentam em discursos das mais diversas pessoas. Tiago consegue reunir um número de depoentes que dá densidade ao longa-metragem, nos faz caminhar do que parecia ser uma curiosa reportagem aos mais completos relatos possíveis sobre o caso. Enquanto o povo da cidade tem, por questões óbvias, dificuldade de reconhecer fotografias, Paulo Fortunato – delegado plantonista à época – demonstra não ter conseguido apagar da memória o ocorrido.

Por outro lado, a desumanização de outros agentes grita na tela. Materializada na figura torpe de outro delegado, Celso Chagas, podemos concluir que a sociedade parece longe de aplicar um olhar crítica às condutas repressivas e torturantes de um Estado punitivista. Dá guarida para que pessoas como ele se sinta disposto para chamar um ex-magistrado cadeirante de “juiz defeituoso” e mostrar que a ponta que deveria agir com isenção está ali para esmagar o que ele chama de “bandidinhos”. Há poucos dias, quando escrevemos sobre “Juízo” (2007), mostramos como a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 não trouxe – nem quinze e nem trinta anos depois – tantos avanços quanto esperado na forma de lidar com menores acusados de infração. Isto porque a tal desumanização a partir do medo segue arraigado no país – tanto nos grandes centros, quanto no interior.

A mídia hegemônica acabou encontrando certo interesse nos acontecimentos no meio de uma ditadura marcada pela censura. A motivação não foi a busca da verdade ou à justiça a quase cem jovens desaparecidos. O jornalista Paulo Markun lembra que a motivação é muito parecida com aquela que identificamos até hoje: assuntos que espetacularizam a violência e mantém um público fiel a novelas da vida real. No momento em que a CineOP de 2021 acontece, as TVs dão picos de audiência há dias contorcendo o sumiço de Lázaro, assassino em série perseguido pela polícia do Distrito Federal.

Chama a atenção que, tanto agora quanto no passado, naturaliza-se discursos não apenas higienistas e torpes, mas profundamente cruéis. Páginas de jornais traziam falas sobre pequenas mutilações ou tatuagens forçadas para melhor identificar os garotos que vierem a praticar pequenos furtos na Estado de São Paulo. Ou seja, evitar a veiculação de discursos de ódio nunca foi prioridade na grande mídia.

O documentário ainda nos coloca com um lado mais humanista. Do carcereiro arrependido ao símbolo que se tornou o Padre Julio Lancelotti em uma cruzada antissistema de dignificar a vida dos mais vulneráveis. Neste mosaico de autoridades e suas complexidades que o diretor obteve até fala do ex-governador Laudo Natel (falecido em 2020, prestes a completar cem anos) se apresentou – ele que sucedeu Ademar de Barros, vítima do ovo de serpente que chocou ao ser um dos articuladores do golpe de 1964. Apesar da documentação mostrar que a “desova” de menores infratores no interior começava se tornar algo sistemático, vale a pena acompanhar sua fala no filme e se questionar o quanto há de memória (ou esquecimento) seletiva em sua narrativa. O cineasta lembra, ainda, “Infância dos Mortos“, corajoso livro de José Loureiro do final da década de 1970 e a ideia sedimentada das representações de violência institucional contra vulneráveis.

A parte final de “Operação Camanducaia” nos deixa em parte perdidos, mas principalmente perturbados com os testemunhos que encontramos. Antes de revelar alguns nomes que a sociedade finge não existir por trás daquelas iniciais, somos lembrados de que não há ressocialização – nem para menores e nem para os adultos. O sistema é feito para que você suma. Vivo ou morto.

Veja o Trailer:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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