Os Despossuídos

Sinopse: Uma jornada impressionista que nos revela a luta diária da classe camponesa faminta. Em nossa era de agricultura industrializada, os produtores de alimentos recebem menos do que em qualquer outra profissão. “Os Despossuídos” – parte cinéma vérité, parte ensaio – examina os mecanismos pelos quais pequenos agricultores entram num ciclo de desespero, endividamento e desapropriação. Filmado na Índia, Congo, Malawi, Suíça, Brasil e Canadá, com cenas magníficas e entrevistas cativantes, a obra acompanha ainda o êxodo rural de camponeses que deixam suas terras para trabalhar em canteiros de obras em megalópoles distópicas.
Direção: Mathieu Roy
Título Original: Lés Dépossédés (2017)
Duração: 1h 21min
Gênero: Documentário
País: Canadá | Suíça

O Ciclo Total do Alimento

Vale a pena iniciar os questionamentos acerca de “Os Despossuídos“, documentário dirigido por Mathieu Roy exibido na programação da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema, retornando ao fim do nosso texto sobre “Superalimentos“, apresentado no mesmo festival. Nossas escolhas não impactam apenas a nossa existência. Não impactam somente o meio ambiente. Temos a força de determinar, com a maneira na qual vivemos (e consumimos) a vida de outras pessoas, de comunidades inteiras.

Quando falamos que a substituição de itens supostamente mais saudáveis, ao mesmo tempo que trazia um conforto sobre a nossa saúde – e até mesmo o impacto na Natureza – também promovia uma substituição da demanda na cadeia produtiva. O longa-metragem nos convoca, então, a repensar como a indústria dos alimentos, ao tentar nos servir, condena outros à miséria. O foco do filme é a agricultura familiar e como ela vem sendo atacada pelas grandes corporações. A suposta pluralidade de produtos que nos orgulhamos em ver nas prateleiras dos supermercados, são possíveis apenas com a otimização e a monocultura que interrompe o bom trato com a terra e destrói as raízes culturais de outros povos.

Na abordagem sobre o agronegócio, o Brasil é um dos vilões em “Os Despossuídos“. Um país que nos últimos anos tem se orgulhado da flexibilização das leis trabalhistas e tem feito vistas grossas às invasões de terras produtivas de povos originários e à destruição da Amazônia. Só que a questão alimentar é um problema global e os governos do Ocidente, em uma onda liberalista cada vez maior, parecem não ter nenhum interesse em agir. A fome segue fora dos debates. Não há espaço para subsídios ou isenção de impostos para que a agricultura familiar progrida e torne as nações auto sustentáveis (ou próximas disso) a partir das riquezas dos seus solos. Deixa a população, portanto, abandonada à própria sorte.

Com foco na Índia, o longa-metragem nos mostra como a mudança de hábitos alimentares promoveram um neocolonialismo ao redor do mundo. Usa a Syngenta (uma das gigantes do agronegócio com suas sementes e produtos químicos) para demonstrar como a indústria tem se aprimorado na produção de comida – mesmo que chegue mais veneno do que nutrientes em nossos pratos. O filme de Roy é um dos raros casos de pluralidade na abordagem, em parte porque representantes da empresa não negaram entrevistas. Já aqueles que tentam entender os impactos nas comunidades, chamam a atenção em como essa busca por eficiência no setor tem destruído o tecido social. “A terra virou uma serva, não é mais uma aliada“, um deles diz.

Por vezes, parece que o documentário se assume como um produto mais televisivo. Apesar da homogeneidade da linguagem dos documentários da Ecofalante, nenhum até agora se valeu da repetição de imagens e até de textos, como se fosse segmentado em blocos. Mesmo assim, produz imagens impactantes, como uma feira livre indiana e dialoga diretamente com nosso país. Naturalmente, chega à atuação do MST (Movimento dos Sem-Terra), uma das principais organizações de fomento à agricultura familiar e que, aqui no Brasil, corre o constante risco de ser criminalizada. É triste comungar da opinião de alguns dos testemunhos, que são extremamente céticos em relação à atuação dos agricultores como grupo e das projeções de futuro relacionado à indústria alimentar.

“Os Despossuídos” nos ganha pela conclusão direta. Precisamos entender que levamos para casa veneno puro e servimos às nossas famílias. Deixar a tal “mão invisível do mercado” nos conduzir neste ponto trará grandes arrependimentos. Mas, insisto em dizer, sigo com o ceticismo. Talvez um dos grandes desafios na conscientização dos povos seja a das escolhas alimentares. Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Para muitos, escolher não é uma opção e o consumo se dá por necessidade.

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Jorge Cruz Jr.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.