Os Sonâmbulos

Os Sonâmbulos Crítica Filme Embaúba Pôster

Assista gratuitamente “Os Sonâmbulos” na Embaúba até o dia 15. Leia a crítica.

Embaúba FilmesSinopse: Era um pequeno grupo de demolidores de mundo. Perdidos na multidão, mas ligados uns aos outros, viviam na solidão da clandestinidade, às voltas com suas contradições: amavam a vida humana, mas desprezavam a própria vida. Estavam prontos ao sacrifício. Niilismo, melancolia, traição, desespero: consciências trágicas em uma longa viagem ao fim da noite. Um conto de amor e de morte em um mundo em que o estado-de-exceção veio a se tornar regra e os últimos dias da humanidade não terminam nunca.
Direção: Tiago Mata Machado
Título Original: Os Sonâmbulos (2018)
Gênero: Drama
Duração: 2h 7min
País: Brasil

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Sussurros que Formam os Gritos

Chegando na plataforma da Embaúba Filmes, “Os Sonâmbulos” é parte de gêneros, cada vez mais brasileiros, de ex-distopia, de dramas da irrealidade. O texto de Tiago Mata Machado e Francis Vogner dos Reis transportado pela direção do primeiro, é prolífico de frases de efeito. Por sinal, não há como competir com o manifesto rasgado em prosa pelos dois, aliado às provocativas performances que perpassam toda obra. Você assiste nesse link a obra gratuitamente até o dia 15 de março – e depois ela fica disponível para locação.

Seria mais sincero com o leitor se formulasse uma crítica cubista e reunisse colagens das falas sussurradas dos personagens, vividos pelo próprio Francis, ao lado de Rômulo Braga e Clara Choveaux. E perguntar a você: qual a sua dose de empatia? Mais do que refletir sobre o que cada um faz pelo país (conceito aberto ou fechado), sociedade (conceito aberto ou fechado) ou por si mesmo (enquanto elemento inconceituável), o longa-metragem nos deixa com tempo para nos debruçar sobre as consequências do que os outros têm feito. É daquelas obras que servem para as interpretações mais antagônicas – residindo aqui seu brilhantismo.

Ao ser alegórico, “Os Sonâmbulos” se presta a quantas leituras forem possíveis. Gera incômodo e desconforto no militante virtual, que nunca sabe se fala para paredes, robôs ou para seguidores reais. Se reais, quantos se influenciam? Se eles são influenciados, transformam essa influência em quê? Por outro lado, suas representações grandiosas, desbundantes e pirotécnicas também têm o poder de fazer parte desse mesmo grupo se realizar. Se imaginarmos o alcance de nossa atuação política como algo imensurável, podemos ser felizes por nossa indignação – ou indignados por nossa felicidade. Tudo é questão de perspectiva e Tiago oferece várias delas.

Em sequências que se alongam para que o espectador formule, interprete, reconstitua (ou, deliciosamente, sinta), o cineasta não ergue lições, mas te dá uma carapuça de mestre para ser usada. Os sussurros por vezes são acompanhados de sons da cidade. Alguns deles vêm das sirenes que moradores próximos de hospitais ou profissionais da saúde não aguentam mais escutar. Interessante como o longa-metragem, finalizado há três anos, descobre novas formas de incomodar – já que a sociedade brasileira segue em queda livre. O Temer já está fora, o Lula já está livre. Mas as sirenes do filme da Embaúba se ressignificaram. O cheiro de morte permaneceu, apenas novas causas se somaram.

Até quando a política agirá como mediadora? Essa é o grande mote extraído dos diálogos econômicos – e dos sussurros. A vertigem da democracia é a última ponta desse dominó, que nunca deixou de rolar pelo chão. Já fui convencido de que a espessa bolha privilegiada que me forjou deu a falsa impressão de que progredíamos. Em um contexto em que o fascismo sempre esteve presente, inovando em formas de se expressar, Tiago e Francis contam a história de uma articulação clandestina, que convenciona que o martírio tem um peso na construção narrativa. O outro lado sabe disso e talvez um dia a verdade contida na ponta daquela faca seja revelada.

O “grupo de demolidores do mundo” mantém o público em estágio de atenção. Como o cinema brasileiro sabe forjar, a provocação estilística encontra espaço para um toque de sensualidade, um voyeurismo contido no olhar de uma sociedade que precisa naturalizar o sadismo porque nossas vidas são moedas de troca. “Os Sonâmbulos” deixa claro que a política institucionalizada falhou. O que seria o sopro de esperança de uma nação virou, nas palavras dos personagens, pacificações forçadas e guerras preventivas. Esqueça o civismo hetero-branco, a sociedade precisa abraçar dois caminhos – na dosagem que achar adequada: organização e desobediência.

Isso amplia a sensação de que as duas horas do filme se constituem em um manifesto. Os recortes de jornais para entender o Brasil começam a perder o sentido porque a mídia se auto implodiu. Inconscientes do tamanho e da reverberação de nossa atuação política, só nos resta agir! Em uma das cenas mais emblemáticas, o fogo criado por um é visto por outro, há quilômetros de distância. Sem chamas, mas a fumaça está lá. Tudo é questão de perspectiva, nunca saberemos que está no topo nos assistindo. A fumaça, por sinal, ganha densidade e toma conta daquele território. Pense que talvez seja o fogo que você criou.

As inúmeras frases de efeito já mencionadas viraram grandes anotações em um acordo. Vale mencionar a definição de uma país “provisório, governado pelo grotesco“. Em outros tempos, talvez sobrasse a nós apenas torcer para que a antecipação do grotesco de 2018 seja estancada o mais rápido possível. Hoje, temos certeza de que depende de nossas ações. Se na crítica de “Silenciadas” (2020) falamos que as mulheres perseguidas pela Inquisição precisaram identificar os verdadeiros demônios, aqui o próprio entendimento sobre fascismo precisa se moldar para nossas atitudes fluírem. Agora ainda mais escancarado, 300 mil mortos e contando.

A “violência justificada pela utopia” merece ser lida. Veja, não há aqui apologia ou incitação à nada. A energia de cada um é definida pelo próprio indivíduo. Quando escrevemos sobre a nação que protege vidraça de banco em nosso texto sobre “Com Vandalismo” (2013) a ideia é o que fez o Brasil desembocar aqui. É um processo de letargia, um sono constante, como se fossemos uma mãe-funkeira cansada, confinada em um reality-show com três refeições por dia, uma cama e um ar condicionado potente (e ainda achar pocah coisa). O “sono iguala a todos” e sem pequenas articulações que nos movimentem, nós enquanto sociedade acabaremos. Na atual conjuntura é ainda mais difícil, porque a luta é permanecermos vivos.

A trilha sonora de Pedro Durães, com a adição de “Alabama Song”, que parece que estamos condenados por toda a eternidade a cantar. Uma grande referência a seu autor, Bertold Brecht, fundamental para que narrativas de estranhamento como a proposta aqui ganhassem forma. Tudo isso alinhado com a montagem de Alice Furtado e Luiz Pretti trazendo seus conjuntos de experiências com o que há de melhor no audiovisual do país, tornando a sessão do longa-metragem também uma espécie de deslumbre. Se Jonathan Crary em “24/7” diz que, enquanto indivíduo cada vez mais explorado, dormir é nosso último desafio, “Os Sonâmbulos” nos faz dar um passo atrás e lembrar, enquanto sociedade, que acordar é o primeiro. E de pequenos sussurros chegaremos a um grito.

Fique feliz com as notícias, mas aceite que para derrubar um mito, é preciso bem mais do que a construção de outro.

Veja o Trailer:

 

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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