Peter Tatchell: Do Ódio ao Amor

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Sinopse: “Peter Tatchell: Do Ódio ao Amor” conta a história do ativista de direitos LGBTQ+ e sua luta por justiça em meio a controvérsias e comoções políticas. Assista o quanto quiser. Ian McKellen narra este documentário com produção executiva de Elton John e David Furnish.
Direção: Christopher Amos
Título Original: Hating Peter Tatchell (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 31min
País: Austrália

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Muito Além do Respeito

Na semana marcada pelo Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia, a plataforma de streaming Netflix lança em seu catálogo o documentário “Peter Tatchell: Do Ódio ao Amor“. O que surge como um perfil do ativista de direitos da comunidade LGBTI+ dirigido pelo jovem diretor australiano Christopher Amos, membro da Peter Tatchell Foundation desde 2014, se transforma em uma historiografia dos movimentos que ganham força na década de 1960 a partir de figuras como do jornalista, que ano que vem completa setenta anos.

O filme ganha o selo de produção do país da Oceania, mas tem grandes nomes do Reino Unido como destaque. Produzido pelo casal Elton John e David Furnish, usa como elemento de conexão uma entrevista de Peter ao ator inglês Ian McKellen. São poucos os depoimentos, porque a figura de Tatchell e os arquivos envolvendo suas ações possuem uma forte carga narrativa. Contudo, o cineasta – também único responsável pelo roteiro – traz um expediente cada vez mais raro em filmes com esta linguagem: o contraponto. Dois deles são muito importantes para compreendermos o que se passou junto à luta nos países da Coroa Britânica das últimas décadas.

O primeiro contraponto vem da aliada Angela Mason, diretora da organização Stonewall entre 1992 e 2002. Ela marca um posicionamento que está longe de criticar o comportamento do biografado, mas amplia as formas de expressão em que deseja se posicionar sobre questões sociais. O protagonista sempre foi conhecido pela maneira como ataca o problema. Pessoas como Peter Tatchell são fundamentais porque parte deles o alcance maior, o senso de urgência, a tal visibilidade que incomoda os preconceituosos. Nisso, o documentário desenvolve de uma cronologia que vincula a gênese de seu pensamento aos líderes em prol dos direitos civis nos Estados Unidos.

Ao perceber os desafios pelos quais a comunidade negra norte-americana ainda precisava enfrentar para que suas organizações políticas ganhassem coro, conclui que era longo o caminho para pessoas LGBTI+. Ele, então, inicia sua trajetória pela articulação de base, imaginando que a representatividade legislativa local seria um passo importante. Porém, a reprodução da homofobia na Inglaterra atingia níveis que poucos conseguiam mensurar na década de 1970.

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Na cena inicial de “Peter Tatchell: Do Ódio ao Amor” o personagem é agredido e preso, o que seria uma constante em sua vida e deixaria sequelas permanentes. O ativista sempre se colocou como objeto da causa, com uma coragem que poucos – por mais lúcidos e bem intencionados que sejam – são capazes de explorar. Uma mistura de desobediência civil, ao não encontrar nos pilares da sociedade normas e costumes que o representam com a antes utópica busca por demonstrar que os valores cristãos não estão vinculados ao preconceito despejado por quem comanda grupos religiosos.

Se Mason, mesmo não invalidando, aponta os excessos de vontade e as consequências do modus operandi polêmico e virulento de Tatchell, o segundo contraponto da obra são as falas de George Carey, bispo aposentado da Igreja Anglicana. Um exemplo de como a forte resistência às demandas de um grupo oprimido e invisibilizado merecem ser trazidas e podem mudar posicionamentos à luz do esclarecimento. Neste ponto, vale a reflexão sobre um fenômeno interessante no Brasil dos últimos meses – que pode soar datado quando este texto for lido anos depois de sua publicação, mas esperamos que não.

Vivendo um fenômeno midiático, um programa de televisão em 2021 registrou, em nosso país, um outro representante da comunidade LGBTI+ que une seus vínculos de fé ao combate à homofobia. Gilberto Nogueira não venceu o Big Brother Brasil e seu nome pode soar deslocado em uma crítica a um importante representante e criador de movimentos como o OutRage!. Porém, na mesma época do lançamento do longa-metragem junto à Netflix, Gil promoveu, mesmo em confinamento, uma pequena revolução. A partir dele, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias pretende a adotar a identidade de gênero na formação de seus missionários.

Uma reflexão que não começou com Gil do Vigor, claro. Em Maceió, a Igreja Batista do Pinheiro foi expulsa da Convenção Batista Brasileira em 2016 por decidir em assembleia receber a adesão de membros manifestamente LGBTI+. A presença de Carey no filme, refletindo sobre o próprio comportamento, é a prova de que estamos diante de uma obra que vai além da figura de Peter – mas tem nele uma relevância que mostra que, sem pequenas âncoras para o ativismo aportar tais demandas, os avanços demoram ainda mais.

Veja o Trailer:

Por seguir a cronologia, Christopher Amos acaba apresentando em “Peter Tatchell: Do Ódio ao Amor” algumas fases fundamentais para entender a sociedade, sobretudo a britânica. Da busca pela representatividade legislativa malsucedida de Tatchell à ascensão do neoliberalismo conservador de Margaret Tatcher, que colocou o poder instituído em rola de colisão com a Frente de Libertação Gay no país. Sem didatismo, somos levados pelo episódio de Stonewall ao duro golpe no processo de combate ao preconceito com o surgimento da Aids na década de 1980. O biografado sempre foi daqueles que nunca se opôs a um debate, que vai da participação da Coroa na Guerra do Vietnã ao atravessamento de lutas que o fez discursar em países comunistas.

O HIV ter sido vinculado a uma suposta punição divina no período em que a moralidade heteronormativa representada pela vovó loira cheia de laquê foi, sem dúvida, um dos piores momentos abordados pelo documentário. A perseguição aos gays atingiu níveis que, esperamos, não se repita em nações que já criaram mecanismos mínimos de combate à homofobia. Pensar que, há poucos anos, eram comuns os flagrantes forjados de policiais que simulavam interesse em outros homens para prendê-los sob a alegação de atentado ao pudor é algo abjeto. Não devemos esquecer que não faz muito tempo ainda era crime ser homossexual em grandes democracias ocidentais.

Quando parecia ser a pessoa mais odiada do mundo, Peter Tatchell “apenas” seguiu com suas convicções. Seu jogo começa a virar quando ele confronta uma visita de Robert Mugabe, que tratamos aqui na Apostila de Cinema em “Presidente“, produção que assistimos no Festival É Tudo Verdade deste ano. Ali ele conseguiu fazer a imprensa britânica se olhar no espelho. Viu que as táticas e os comportamentos intolerantes fazia daquela nação tão vergonhosa quanto as críticas de Estados sob regime de exceção criticado com certa demagogia, como o Zimbábue. A exposição constante de sua figura fez com que parte de sua comunidade também o reconhecesse enquanto ícone.

O filme vai bem além de todas essas questões trazidas aqui, mas acredito que seguir abordando com minúcias levaria esta crítica a um caminho menos expositivo, que acaba sendo o real desejo de seus realizadores. Se você chegou até aqui e ainda não assistiu, recomendo a oportunidade. Há outros pontos não trabalhados na crítica, como a relação do protagonista com sua mãe, Mardi. Aproveite e reflita sobre como estamos hoje. Há poucos dias uma das vereadores mais votadas de Niterói, Benny Briolly, teve que abrir mão de seu mandato e sair do país por ameaças de morte motivadas por homofobia, por exemplo.

Acontece aqui e em outras partes do mundo. O biografado não para de procurar onde a luta se faz mais necessária. Se encerra com uma extensa lista de países em que a homossexualidade ainda é crime. Nos créditos, “Believe” do produtor Elton John. A primeira música de trabalho de um álbum de 1995 com forte componente autobiográfico chamado Made in England – feito esteira do sucesso da trilha sonora de “O Rei Leão” (1994). Uma das letras mais bonitas do compositor neste período.

O início e o final do longa-metragem reforçam o ideal de desobediência civil necessária, em focos como a Rússia – e falamos muito sobre isso em “Welcome to Chechnya“, outro documentário recente fundamental, disponível no momento no Telecine Play. “Peter Tatchell: Do Ódio ao Amor” ganha peso por que não vai além do registro histórico, ele também materializa o que precisa ser feito agora.

Ouça Believe, de Elton John:

 

 

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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