Sinopse: Em “Relatos do Mundo”, um veterano de guerra que viaja de cidade em cidade lendo as notícias faz uma perigosa viagem pelo Texas para levar uma garotinha órfã até seu novo lar.
Direção: Paul Greengrass
Título Original: News of the World (2020)
Gênero: Drama | Aventura | Faroeste
Duração: 1h 59min
País: EUA | China
Rastros de Cinema
A temporada de premiações tem tudo para ser mais sofrível do que de costume em 2021. Tanto que a Apostila de Cinema começou devagar, aguardando a consolidação de alguns nomes, para não se decepcionar em um ritmo avassalador – como vem acontecendo com boa parte das produções que pinçamos no catálogo da Netflix nas últimas semanas. “Relatos do Mundo“, porém, é um longa-metragem bem menos genérico do que a média – ou pode ser fruto apenas de baixas expectativas. Claro que a obra da Universal (provavelmente a próxima vítima da concentração de grandes estúdios) flerta com muitos elementos usados à exaustão nesses tipos de filme. Todavia, no que Paul Greengrass (enquanto diretor e co-roteirista, ao lado de Luke Davies) tenciona atualizar a narrativa, ele consegue – o que já é um sopro de esperança na Hollywood atual.
Adaptação de um dos mais novos romances da veterana escritora Paulette Jiles, somos levados ao ano de 1870, cinco após o término da Guerra de Secessão norte-americana. Kidd (Tom Hanks) é um ex-combatente que percorre territórios texanos para levar notícias dos jornais aos quais representa à população local. Em uma dessas paradas ela encontra Johanna (Helena Zengel), uma menina duplamente órfã: sequestrada junto aos seus tios alemães pelo povo Kiowa, ela tenta, após a morte da nova família, voltar para Hill County, onde a biológica vive. Kidd, então, decide ajudá-la nessa jornada.
Aqui está o primeiro foco narrativo que faz uma animadora releitura do faroeste enquanto gênero. O antagonismo dos povos originários é, de plano, afastado. Mesmo que a situação tenha como mote uma atitude daquela comunidade, não há cartadas clássicas como desejo de vingança ou uma resistência desmotivada. “Relatos do Mundo” se passa poucos anos após “First Cow” (2020), um filme superior a ele – dirigido por Kelly Reinchardt. Lá a cineasta soube explorar os espaços e as pessoas que compõem e movimentam aquelas terras. Aqui Greengrass joga para o lado mais tradicional, de solução de um conflito diretamente apresentado.
Claro que a proteção de uma jovem nos faz logo pensar da saga sanguinolenta de Ethan Edwards (John Wayne) em “Rastros de Ódio” (1956). Todavia – e ainda bem! – não há por parte dessa produção qualquer tentativa de emular a obra-prima de John Ford, o que já soa um despautério apenas no mundo das ideias. Há algo próximo de um drama da era do Velho Oeste, de qualidade, que aplica ferramentas de aventura e até de road movies quando a trama assim pede. Uma longa cena de troca de tiros ou um passeio de câmera do cineasta no início do terço final – quando ele mergulha de vez na trama principal e tira todas as outras do caminho. Por sinal, há um verniz histórico bem menos modorrento que “Lincoln” (2012), filme de Steven Spielberg que rendeu o terceiro Oscar de melhor ator a Daniel Day-Lewis, por exemplo. No pano de fundo, destrinchar a personalidade de Kidd é um interessante exercício, aplicável aos tempos atuais.
Em certo momento ele e Johanna param em Dallas e se ergue no meio daquela jornada uma motivação obscura, um segredo a ser revelado. Por algum tempo fica a impressão de que esse subterfúgio soaria forçado, quase como se usasse a esperança no porvir como incentivo a continuarmos dando atenção aos detalhes. Porém, quando isso se materializa, todo o progresso do protagonista – em um trabalho sóbrio, sem invencionices, mas eficiente de Tom Hanks – ganha sentido. Parecia que o drama pessoal surgiria de forma atravessada, mas o enigma proposto condiz com o que se segue – que é mostrar a transformação de Kidd, uma conscientização que faz com que seus conceitos soem envelhecidos. Aliás, os vinte minutos finais do filme brinca com a própria lógica narrativa, porque a chegada dos personagens ao destino soa como um epílogo, mas ainda havia espaço para novas representações.
Já o antagonismo branco, ainda que seja um inimigo difuso, não individualizado, restaura uma intenção bem mais verdadeira no trato com a História. Há, ainda, um caminho em “Relatos do Mundo” que vale o registro. Ao ser o mensageiro de notícias que dão conta do abolicionismo após a derrota dos Confederados, aos poucos a posição de poder de Kidd começa a ser questionada e até mesmo ironizada. Uma forma de leitura de que a posse do conhecimento a partir do maior acesso à imprensa (enquanto veículo) permitiria. Quase como uma democracia participativa que, no seu modo embrionário, permitia que mais vozes se erguessem. Algumas delas diretamente racistas, por sinal. A dúvida sobre a veracidade, ou as intenções por parte do emissor, segue ganhando corpo em nosso momento atual enquanto sociedade. O desafio dos Estados Unidos da segunda metade do século XIX passava pelo próprio domínio da língua e da leitura. Já no mundo do século XXI, vivemos as consequências e as possibilidades das mídias alternativas e da produção de conteúdo independente.
Por sinal, outro elemento explorado com menos exagero e mais sensibilidade do que de costume é a dificuldade de comunicação entre os Kidd e Johanna. Nem tudo é louvável no filme e essa grandiosidade em formato faz-de-conta que a digitalização das imagens provoca é um incômodo que persiste nas produções atuais, traz uma frieza de sensações que não condiz com a forma de expressão que aprendemos a amar. Porém, é algo que o olhar do espectador precisará se adaptar, por mais que tire do cinema comercial a atmosfera mágica que levava o público a se apaixonar de forma arrebatadora por obras como essa. Apesar do significado original da palavra gerar estranhamento, pessoalmente sinto falta da grandiloquência de um cinema que não mais existe. Porém, em “Relatos do Mundo“, alguns rastros ainda são identificados pelo caminho.
Veja o trailer: