Sinopse: Documentário que tem como mote os episódios de “rolezinhos” que marcaram o Brasil na década passada, com a presença massiva de jovens negros e de periferia a ocupar os shoppings de centros urbanos, assim explicitando o racismo cristalizado nessas fronteiras simbólicas. Acompanhando a vida de três dessas personagens e mobilizando um rico material de arquivo, o filme, de assumido compromisso militante, assinala os ecos entre diferentes contextos e práticas de resistência política e subjetiva, endereçando a abissal desigualdade social e racial que se atualiza diariamente no país.
Direção: Vladimir Seixas
Título Original: Rolê – Histórias dos Rolezinhos (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 22min
País: Brasil
Abaixo ao Higienismo Espacial
Na entrevista a Eduardo Valente no canal oficial do 10º Olhar de Cinema no YouTube, o cineasta Vladimir Seixas trocou palavras sobre o fato de “Rolê – Histórias dos Rolezinhos“, exibido na mostra competitiva do festival, ser parte do fim de um ciclo da produtora Couro de Rato. Iniciando em 2008 com o curta-metragem “Hiato“, as narrativas que dão voz e protagonismo ao povo periférico encontrou uma semelhança em seu termo inicial e final: uma ocupação específica de espaço, que muito diz sobre a sociedade racista brasileira.
Quando o primeiro trabalho do diretor ganhou forma, a segunda onda de rolezinhos ainda não havia eclodido. Ela ocorreu em 2013, majoritariamente na região da Grande São Paulo. O olhar da mídia hegemônica, quase sempre focado na metrópole mais rica do país, reverberou os encontros agendados pelas redes sociais nos shoppings das cidades. O fez, claro, carregado de estereótipos e discursos discriminatórios. Por mais que a montagem do próprio Vladimir priorize as chamadas cabeças de matérias de telejornais e policialescos de qualidade duvidosa, uma agente formadora de opinião da classe média conservadora é a primeira a aparecer: Rachel Sherazade, a mesma que ganhou projeção ao defender o justiçamento de amarrar um jovem negro em um poste – e que inspirou, em parte “A Primeira Pedra” (2018), média-metragem do diretor, em parceria com o Futura e indicado Emmy Internacional.
O documentário, então, cria esse vínculo com as experiências para além da sessão ao trazer tal figura. E, logo depois, faz uma relação de causa e consequência com um dos episódios mais emblemáticos do genocídio do povo preto no Brasil. Ao iniciar a revisitação da trajetória de Jefferson Luís, símbolo dos rolês paulistas em 2013, um grafite de Marielle Franco pedindo justiça pela morte da parlamentar ganha a tela. Uma lembrança emblemática para quem sofre a dor do racismo, quem acredita na conscientização e empoderamento por representantes em todos os espaços, incluindo as esferas e os meandros do poder. Quem relativiza ou não compreende o peso desse assassinato em específico, pouco preparado está para debater a própria sociedade.
Veja o Trailer:
Enquanto território urbano, os shoppings carregam características peculiares. Hermético, é uma emulação do comércio e dos núcleos de sociabilidade da cidade. Carregado de luzes fortes para motivar todos a circular e adquirir produtos e experiências por horas a fio. Ao mesmo tempo, é nele que se pratica higienista moderna, com um arsenal de seguranças e controles de acesso por câmeras e sensores que só funcionam quando seus agentes aplicam uma alta dose de racismo estrutural. “Rolê – Histórias dos Rolezinhos” se mostra orgânico, pouco interessado em didatismos. Parece aceitar que a parcela preconceituosa do público não caminhará junto – e tenta ser dinâmico para enviar mensagens instigantes aos ignorantes.
Portanto, é menos panorâmico do que exemplares como “Quadro Negro” (2020) e seus debates sobre inclusão no sistema de ensino superior; ou “Danças Negras” (2021) sobre a presença da cultura negra na contemporaneidade. É mais experiencial, apesar de abrir nos minutos finais uma linha de conclusão de raciocínio por falas oriundas de um encontro, um arremate que não é puramente academicista, mas e pode fazer as vezes de contextualizador.
Encontra seus momentos de ironia ao lembrar como o shopping é um espaço com uma convenção social tacanha, forjada para manter marginalizados do lado de fora – mas é gerido por jovens com baixos salários, em sua maioria da periferia. Fazendo a roda girar sem tirar proveito dela. Para não dizer que tal questão passou ao largo da mídia hegemônica, Vladimir recupera uma entrevista de Jeferson a Heródoto Barbeiro para um jornal da Record News. Nele, o rapaz é questionado sobre a inexistência de espaços de lazer e socialização nas ruas e praças da periferia. Mais velho, na gravação posterior do documentário, aquele reflete sobre a forma como o Estado vai afastando as pessoas mais pobres dos grandes centros.
Uma tática que volta à ordem do dia de vez em quando. Em 2015, por exemplo, sob a desculpa de racionalização da frota de ônibus urbanos, a administração do malandro neoliberal Eduardo Paes quis acabar com o transporte público oriundo do subúrbio carioca na zona sul. O plano era dificultar (ainda mais) o acesso dos moradores da áreas mais afastadas (conceito, por si só, problemático) às praias. Portanto, a negativa do direito à cidade fundamentada no racismo não é exclusividade dos shoppings, mas seu hermetismo parece acentuar tal premissa, parece até que lhe dá uma razão de existência.
No tempo presente, Jefferson aparece testando um aparelho de realidade virtual, em mais uma representação espirituosa do filme de Vladimir. Naquele território que só os seus olhos podem ver, não há limites. Você pode destruir os preconceitos da sociedade e ser, de fato, livre. Pena que a poética não consegue se estabelecer como tom da narrativa da rotina de corpos negros periféricos nos grandes centros brasileiros. A “realidade real” se sobrepõe de maneira cruel e novos exemplos do racismo, em suas manifestações mais violentas, acontecem diariamente.
Fosse o Brasil uma nação com o mínimo de entendimento sobre a dignidade humana estabelecida de forma majoritária, uma empresa como a rede de supermercados Carrefour teria fechado para balanço (social) no dia 20 de novembro do ano passado, quando João Alberto Freitas foi espancado até a morte. Seixas traz um dos exemplos mais recentes da relação de causa e efeito para demonstrar o porquê da importância de se discutir o direito à cidade e de como os rolezinhos, mesmo com sua origem mais irreverente, deveria ter sido levado a sério desde início, para que suas lições de respeito pudessem ser apreendidas.
No dinamismo de “Rolê – Histórias dos Rolezinhos” há espaço para intervenções, performances e também na memória do dia em que Jair Bolsonaro foi eleito Presidente do país. São incontáveis os filmes que mostram uma cena que vai direto na lembrança de boa parte de nós: o olhar perdido para a televisão e o som de fogos ao fundo. Um marco no retrocesso de uma sociedade que pouco avançou.
No tempo presente, Vladimir Seixas traz desdobramentos da politização dos rolezinhos, que foram se tornando atos capazes de conscientizar os jovens negros da periferia do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em lutas que parecem um pouco mais solitárias, seus personagens falam de profissionalização, de ocupação de espaços acadêmicos e da participação na sociedade de consumo. Aquela que os shoppings preferem negar a muitos, ao invés de se assumir democrático.
Assista à conversa de Eduardo Valente com Vladimir Seixas sobre “Rolê – Histórias dos Rolezinhos”: