Rustin

Rustin (2023) Crítica do Filme da Netflix Apostila de Cinema Poster

Sinopse: Mesmo com o racismo e a homofobia, o ativista Bayard Rustin ajudou a mudar o curso da história dos Direitos Civis ao orquestrar a Marcha sobre Washington em 1963.
Direção: George C. Wolfe
Título Original: Rustin (2023)
Gênero: Biografia | Drama | História
Duração: 1h 46min
País: EUA

Rustin (2023) Crítica do Filme da Netflix Apostila de Cinema Imagem

Antagonismo dos Seus

É inegável que “Rustin”, cinebiografia de Bayard Rustin disponível na plataforma de streaming Netflix é o que chamamos de “Oscar bait” (filmes com sua divulgação e até produção direcionadas a receber indicações aos prêmios da Academia). O longa-metragem que conta com o mecenato executivo de Barack e Michelle Obama (de outras parcerias bem-sucedidas com a Netflix como “O Mundo Depois de Nós” também de 2023 e “Indústria Americana”, vencedor do Oscar de melhor documentário em 2020) conseguiu o que pretendia: a nomeação a melhor ator de Colman Domingo.

Porém, por trás dessa ótica de produção, há outros fatores a serem percebidos na narrativa sobre o ano de 1963, que culminou com a famosa e importante Marcha de Washington em 28 de agosto, marco na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. A primeira está na junção dos trabalhos do diretor George C. Wolfe (de “A Voz Suprema do Blues” de 2020), dos roteiristas Julian Breece (que escreveu este projeto para a HBO em 2015 para ser dirigido por Lee Daniels, chegando a reunir horas de entrevistas) e Dustin Lance Black (vencedor do Oscar na categoria por outra cinebiografia, “Milk: A Voz da Igualdade” em 2010); além do editor Andrew Mondshein (experiente, indicado ao Oscar em 2000 por “O Sexto Sentido”, mas que teve apenas em “A Voz Suprema do Blues” algo próximo de uma cinebiografia). O filme demanda, por óbvio, a contextualização histórica – apesar das grandes mensagens da obra transcenderem esse recorte temporal.

A forma como “Rustin” opera isso no primeiro terço deixa suas representações bem engessadas. Entendendo necessário introduzir uma dezena de personagens, chega a utilizar a legenda tal qual um documentário, além de buscar momentos para dar visibilidade a boa parte dos líderes do Movimento Negro da época. Ocorre que há três grandes conflitos que podem ser apontados na trajetória de Bayard tal qual nos apresenta no filme. A conclusão a que chegamos é a mesma, com diferentes nuances em virtude da complexidade: o protagonista sofre o “antagonismo dos seus”.

A começar pela figura representada por Roy Wilkins (Chris Rock). O mais influente entre os líderes não parece disposto a abrir mão do protagonismo da causa. Pela imagem dele – mesmo que de forma trabalhada de forma um pouco confusa no desenvolvimento da narrativa – podemos alcançar o momento histórico em que a luta pelos direitos civis ganhava voz no governo de JFK nos EUA. Todavia, uma voz com projeção (e, principalmente, reverberação) limitada.

Assim como em “Judas e o Messias Negro”, vencedor do Oscar de melhor ator coadjuvante em 2022, a crítica aos líderes do Movimento Negro do início dos anos 1960 é aceitar o enquadramento na lógica legalista. As mudanças provocadas por discussões políticas e edições de leis quase sempre operam na velocidade de tartaruga. Em uma democracia pouco representativa e de ideias parecidas como a do país que reveza republicanos e democratas, a visão de que o governo de JFK (assim como o de Obama, quase 50 anos depois) é o suficiente para grandes avanços é falha. Por sinal, um quê de decepção que muitos representantes de movimentos sociais sempre apontaram nas vezes em que governos de centro-esquerda aconteceram no Brasil.

A disputa de poder representada por Wilkins faz com que Rustin chegue a ser boicotado na ideia da manifestação pacífica mais importante da história do seu país (até hoje). A forma como ele tenta superar isso é o grande trunfo de narrativa do longa-metragem: ele foge da centralização dos líderes e parte para uma organização celular, abrindo diálogo com outras frentes religiosas, políticas e “interracionalizando” algumas demandas e participações. Uma visão moderna para época, fundamental para o sucesso de muitos movimentos que o seguiram – e na era pós-Primavera Árabe (reverberada nas Jornadas de 2013 por aqui) abandonada ou esquecida.

O segundo conflito se vincula diretamente à imagem de Martin Luther King (Aml Ameen). Aqui não estamos diante de uma disputa de poder, mas sim no encontro entre dois carismáticos líderes, cada um com sua ideologia. Há uma escolha por relativizar MLK enquanto personagem, até mesmo pelo interesse maior que sua personalidade provoca. Porém, acredito que aqui essa pouca complexidade de uma figura de destaque da Marcha de Washington prejudique o entendimento da obra.

Quando falamos em ideologias, chegamos ao terceiro conflito e o mais importante mesmo em um cenário de grande força histórica. A forma como Bayard é desautorizado e até mesmo boicotado denota a carga homofóbica das relações da época (e anticomunista, mas trabalhada em menor grau por ser um vespeiro menos mexido pelos EUA). Essa situação é influenciada não apenas pelos ruídos na amizade com o pastor MLK, mas pela forma do protagonista satisfazer sua sexualidade a partir de sua paixão por Elias (Johnny Ramey).

O filme permite inúmeras leituras interessantes, desde a forma como a organização celular dos protestos culmina na abordagem de porta em porta até uma passagem que tenta atrair a ideia de desobediência civil e sua interpretação em pautas identitárias. Vale lembrar que esta semana revelou-se no Brasil a deturpação do conceito de resistência às leis injustas no suposto discurso pós-golpe de Jair Bolsonaro, em clara demonstração de que o conhecimento da História é a principal arma contra as injustiças futuras em qualquer ponto do planeta.

Quando encontra as representações através dos conflitos citados, a obra entende que o conceito contemporâneo de “atravessamento” é fundamental para que a narrativa nos envolva. Chegamos no momento em que “Rustin” ganha uma fórmula mais dinâmica. Curioso é que, quando se aproxima de uma cinebiografia tradicional (e criticada por 10 em cada 10 críticos a cada lançamento desta natureza), o longa-metragem é mais poderoso. Aos poucos Bayard deixa de ser pária do Movimento Negro, supera o “antagonismo dos seus” e se torna o herói invisível daquela tarde histórica para os EUA e a obra chega ao fim eficiente ao dar visibilidade ao que foi esquecido, mesmo que demore a encontrar dentro de si a melhor forma de nos contar.

Veja o trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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