Todos os Mortos

Todos os Mortos

Sinopse: Na São Paulo de 1899, entre o passado conturbado do Brasil e seu presente fraturado, as mulheres da família Soares tentam se agarrar ao que resta de seus privilégios. E Iná Nascimento, que fora escravizada pelos Soares anos antes, luta para reunir seus entes queridos enquanto procura dar vazão a suas próprias vontades.
Direção: Caetano Gotardo e Marco Dutra
Título Original: Todos os Mortos (2020)
Gênero: Drama
Duração: 2h
País: Brasil | França

Todos os Mortos

Brava Elite Brasileira

Isabel, a Dona. Ou a Princesa. “Todos os Mortos“, longa-metragem que Caetano Gotardo e Marco Dutra apresentaram na mostra competitiva do Festival de Berlim 2020, chega ao público brasileiro no segundo dia do Festival de Gramado, no sábado à noite mais nobre do Cinema Brasileiro em muito tempo – exibido pela televisão, via Canal Brasil. O filme se passa na virada do século XIX para o XX e conta a história sob duas óticas: a da família Soares, que tem em Isabel (Thaia Perez) sua matriarca; e a de Iná Nascimento (Mawusi Tulani), ex-escravizada que tenta construir sua vida sem se valer da antiga relação com a casa que tinha sua propriedade.

O prólogo – ou, se preferir, um curto primeiro ato – se passa no aniversário da Independência do Brasil. Aqui os diretores encerram a apresentação dos Soares com o hino oficial do fato histórico de 1822, conhecido por muitos como “Brava Gente Brasileira”. Isabel tem duas filhas. Maria (Clarissa Kiste) é uma freira, professora de escola católica, mais uma herança que segue presente em nossa sociedade. Ana (Carolina Bianchi) mora na residência da família e começa a apresentar sinais de esquizofrenia. Em uma relação parecida com a das irmãs do austríaco “O Chão sob os Meus Pés“, Maria tentará de todas as maneiras ajudar Ana, que começa a ver homens escravizados que já morreram andando e trabalhando pela propriedade durante a madrugada.

Ao mesmo tempo que, à primeira vista, louvou-se a participação de “Todos os Mortos” em um dos principais festivais internacionais, havia uma desconfiança de se repetir o fenômeno de “Vazante” (2017), longa-metragem que Daniela Thomas apresentou no Festival de Brasília. Até porque Gotardo e Dutra se valem de um estilismo, de um construção estética primorosa, para tratar de ancestralidade e de feridas ainda abertas na sociedade brasileira. Usando como passagens de tempo as grandes datas do calendário nacional (Finados, Natal e Carnaval), a transição entre sagrado em suas diversas manifestações e profano ocorre sem traumas. Não há representações anacrônicas, tampouco um didatismo forçado. Curioso sua seleção no recorte competitivo em um território estrangeiro, em que se torna mais difícil a compreensão das referências. Porém, assistindo à obra, podemos atestar que sua qualidade técnica, seu primor estético e sua carga narrativa foram fundamentais para garantir a merecida participação.

A família Soares não se conforma, cada integrante ao seu modo, com a mudança das relações que tiraram de sua posse a carga de trabalho que usavam. Uma nova funcionária é entrevistada como se pudesse emular atividades que vão além de suas obrigações – como cantar. Por sinal, o uso da trilha incidental e da música é uma constante no longa-metragem. Há trechos do “Todos os Mortos” em que os diretores nos deixam próximos de uma ópera, com representações de peças clássicas ou vinculadas às religiões que ali se colocam como verdadeiras antagonistas. Um potente trabalho de som já observado em outras produções da dupla: “Quando Eu Era Vivo” (2014) de Caetano Gotardo e “As Boas Maneiras” (2017), de Marco Dutra em parceria com Juliana Rojas.

A narrativa, por vezes, não dá conta do leque de personagens. O roteiro parece gestado de forma similar aos grandes romances norte-americanos (outra característica capaz de universalizar a obra). Porém, não são todas as tramas paralelas bem aproveitadas. Eduardo, por exemplo, é um jovem filho de mãe negra e pai branco – separado de sua genitora após o parto. O filme ensaia um envolvimento dele com Ana e ainda trata rapidamente com essa crise identitária – sem que se vá adiante nesses pontos. Essas separações de família foram fundamentais para tornar ainda mais difícil os debates e conscientização sobre o racismo estruturalizado brasileiro. Posto dessa maneira, não podemos negar que inserir mais um elemento ao debate é válido, mas no desenrolar do filme fica uma sensação de carência.

Já o filho de Iná, não, esse é a materialização total de todas as tensões raciais que atravessam ou últimos três séculos de Brasil e nos conduzirá para além dos limites do espaço-tempo aparentemente idealizado nessa temática histórica. Quando escrevemos sobre “Theodorico, O Imperador do Sertão” (1978), documentário televisivo de Eduardo Coutinho, mencionamos como o fim do comércio e depois a proibição da propriedade de pessoas nunca foi bem entendido pela elite. Ali estávamos no final da década de 1970. Portanto, é possível imaginar a maneira dissimulada com a qual os poderosos se comportavam ainda no século XIX.

Gotardo e Dutra fazem as pontes com nossa realidade, sem deixar aquela sensação de exorcização de demônios que Fellipe Gamarano Barbosa faz em “Casa Grande“. Se valendo de um trabalho de atuação espetacular de Mawusi Tulani eles a colocam como contraponto, em todas as formas de manifestação daquela família. Há, claramente, um excelente trabalho de pesquisa, que leva “Todos os Mortos” para um caminho totalmente inverso do exotismo que a produção nacional se valia ao pensar as representações de religiões de matrizes africanas por algum tempo. Pelo contrário, o ápice do filme, quando Iná canta para Matamba (Iansã) é uma das sequências mais fortes do audiovisual assistido em 2020 – podemos ir além desse limite, inclusive.

Ainda na visualidade, a cena em que Ana enterra um carta de alforria que lhe foi entregue também tem uma carga pesada. Nas verbalizações, “Todos os Mortos” não é diferente, se utilizando de frases de muito efeito. Isabel é responsável por transformar em palavras uma outra visão do que é mostrado nessa sequência do enterro da carta. “A escravidão não está enterrada“, ela diz. Se sobrepondo à atitude simbólica de sua filha, nos leva a crer que a personagem de Thaia Perez diz aquilo da boca para fora, uma comum dissimulação burguesa. Já o processo seguinte que o Brasil enfrentou com o término da escravidão legalmente constituída, também está no filme, qual seja, a tentativa de embraquecimento de seu povo.

Quando escrevemos sobre “Campo Grande“, de Sandra Kogut, lembramos que um dos reflexos da colonização europeia está nas salas de boa parte dos ricos: um piano. Dentro dessa lógica, chama a atenção quando o filho de Iná é convidado a praticar o instrumento (chega a ouvir sobre a origem da polca, dando um ar de refinamento ao ato de tocar piano). Aqui reside uma sub trama que terá reflexos adiante, com sua mãe se urgindo contra uma tentativa de condução de comportamento do menino por parte daquela família. O mesmo garoto que se orgulha (e emociona sua genitora e a todos nós) quando demonstra consciência sobre sua ancestralidade ao dizer que admira muito os já citados cantos a Matamba quando os ouve. Talvez aqui faça sentido o “sumiço” de Eduardo.

Esse é o paralelo mais forte do longa-metragem e é a mensagem que nos é deixada ao final. Aquele menino, que surge até com certa despretensão nessa gama de relações perniciosas entre aquelas pessoas, é o brasileiro que atravessará o tempo. Resistirá às tentativas de apagamento, sufocamento de suas manifestações religiosas, de sua cor, de sua liberdade. Isabel em certo momento diz, claramente se relacionando à elite branca do nosso país: “uma bela época está chegando. Este século (ainda) será nosso“. O século XX passou, é verdade. Mais uma vez construído por todas as mãos, mas comandado pela mesma elite que não admitia a “derrota” que a outra Isabel, a dona da caneta Bic daquele momento, ganhou os créditos. Ele passou e foi, sim, deles.

Todos os Mortos” transporta para 2020 o filho de Iná, com seus séculos de conhecimentos, referências e ancestralidades antes que o pano de sua sessão suba de vez. Ali está ali uma proposta: a de que neste século podemos fazer diferente.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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