Sinopse: Cinebiografia do carnavalesco Joãosinho Trinta, mostrando sua vinda de São Luís, no Maranhão, até o Rio de Janeiro. Seu início de carreira como bailarino, a ida para o Salgueiro e a estreia como carnavalesco pela escola. Dirigido por Paulo Machline (Natimorto) e com Matheus Nachtergaele, Milhem Cortaz e Paola Oliveira no elenco
Direção: Paulo Machline
Título Original: Trinta (2013)
Gênero: Biografia | Drama
Duração: 1h 34min
País: Brasil
Revolução Lírica
Lançado em 2014, três anos após a morte do biografado, “Trinta” é um raro caso de escolhas de recortes narrativos na cinematografia brasileira – que costuma ser tradicional e conservadora ao apresentar histórias de personalidades históricas pelo viés panorâmico. Dirigido por Paulo Machline (que em 2009 havia co-dirigido “A Raça Síntese de Joãosinho Trinta”, ao lado de Giuliano Cedroni e indicado ao Oscar em 2001 pelo curta-metragem “Uma História de Futebol”), o longa-metragem inicia sua abordagem em um momento crucial da vida de Joãosinho Trinta (Matheus Nachtergale): aceitar do presidente da Acadêmicos do Salgueiro, Germano (Ernani Moraes) o posto de carnavalesco da escola após a conturbada saída do mestre Fernando Pamplona (Paulo Tiefenthaler).
A partir daí o filme, que tem como uma das produtoras a cineasta Joana Mariani (que lançou ano passado “Me Chama que Eu Vou“, documentário sobre Sidney Magal) resgata outras passagens do personagem, todas que antecedem o inesquecível desfile da agremiação no ano de 1974, “O Rei de França na Ilha da Assombração“. Esse seria um dos seis títulos do Salgueiro entre as décadas de 1960 e 1970 (e só não foram mais porque dois anos depois, com o bicampeonato, Joãsinho migraria para a Beija-Flor, totalizando cinco troféus consecutivos).
Visualmente, “Trinta” tem uma decisões que ampliam seu impacto – já forte em virtude do trabalho excepcional de direção de arte de Daniel Flaskman, uma das quatro indicações ao GP do Cinema Brasileiro. Matheus Nachtergale também seria lembrado e o figurino de Kika Lopes e a trilha sonora de André Abujamra sairiam premiados. Não apenas a reconstituição de um barracão e de todos os elementos visuais que acompanham o grandioso desfile chamam a atenção. Na fotografia de Lito Mendes da Rocha o sépia ganha espaço quase todo o tempo. Nos permite mergulhar na realidade em que Joãosinho sente a descrença de parte da comunidade e dos responsáveis pelo Carnaval – à exceção do próprio Germano.
Ouça o samba-enredo “O Rei da França na Ilha de Assombração”, do desfile do Salgueiro de 1974:
Isso nos leva a uma realidade um pouco diferente. Nos anos 1970 o machismo e a homofobia ainda davam as cartas nos bastidores da maior festa do planeta. Aqui estamos entrando em uma era de profissionalização e da transformação dos desfiles – pensados no início da década de 1930 pelo jornalista Mário Filho – em um potente ímã do turismo e da projeção internacional do Rio de Janeiro. Algo que perpassa a série “Doutor Castor“, a qual também falamos durante essa programação de Carnaval da Apostila de Cinema. Trinta foi peça importante nessa engrenagem e tornar sua biografia um debruçar sobre essas origens consegue, sem deixar de exaltar sua figura, ser ainda mais consistente nessa mensagem e nessas leituras possíveis.
Aos poucos a fotografia ganha mais cor, mais solaridade. À exceção é sempre a casa de Pamplona, que tem seus momentos de antagonismo até não ser mais possível resistir ao encanto do seu discípulo. Até o cinza, remontando à quarta-feira onde tudo se acaba, ganha força em uma montagem no momento final, de reencontro do protagonista com sua versão criança, talentosa e autodidata. Por sinal, duas vezes as montagens se impõem em “Trinta” e ambas de forma impressionante: nessa e quando ele, com prazo apertado para apresentar o enredo para a cúpula do Salgueiro, passa as ideias da sua cabeça para o papel e usa o material que há em sua mesa – momento em que a trilha de Abujamra se destaca.
“Um poeta, um lírico“, nas palavras de Pamplona. Joãosinho Trinta foi responsável por desenvolver uma narrativa, uma confluência de som e imagem que transformou os desfiles das escolas de samba em uma grande ópera. Essa montagem faz com que o espectador sinta isso antes que o protagonista verbalize suas intenções. Machline explora o contra plongée enquanto enquadramento (quando a câmera está abaixo do nível dos olhos, voltada para cima) quase todo o tempo em que o sépia comanda a luz. Isso não apenas redimensiona aquela figura, conhecida pela baixa estatura, mas também traz esse poder que o personagem acredita ter – mas que ainda precisava conquistar. Um apontamento crítico à sua trajetória sem apelar para falsos dilemas ou vilanias.
Há, ainda, uma exploração do Theatro Municipal do Rio de Janeiro no primeiro terço de “Trinta”. Reflexo de uma restauração orçada em mais de cinquenta milhões de reais e encerrada poucos anos antes da gravação do filme – uma rara chance de explorar o espaço, incluindo a adição de bonitas cenas de balé clássico. O longa-metragem encontra um ritmo que mantém o público com o interesse em alta, não há nenhum momento em que identificamos a perda dessa unidade. Além disso, não se vale de maniqueísmo, não exagera em representações onde fica claro que havia, sim, um boicote por parte de alguns – mas a intenção por trás era acreditar que faziam o melhor para o Salgueiro.
Até que o homem que saiu de São Luís do Maranhão com o sonho de receber os aplausos encontra um dos maiores palcos do mundo. O que ele fez foi uma revolução – e, portanto, seria impossível não identificar resistências. Aos poucos as escolas de samba e o Carnaval carioca começaram a aceitar contribuições externas, sem que a essência do povo das comunidades e da espontaneidade da festa se perdessem. Um exemplo é a composição de Zé Di (Gustavo Novaes), oriundo da ala de compositores da Vai-Vai de São Paulo, ser escolhido naquele ano. O Salgueiro de 1974 foi, portanto, um marco. Preconceitos, descrenças e ignorâncias começaram a perder cada vez mais espaço e a folia passou a ser mais do que democrática, inclusiva. “Trinta” foi perfeito ao ter um foco, o recorte de um período. Porque cada Carnaval carrega consigo uma história e várias delas têm em Joãosinho como destaque.
Ouça o samba-enredo do histórico desfile da Beija-Flor de 1989, “Ratos e Urubus… Larguem Minha Fantasia”: