Sinopse: No verão de 2006, a câmera de vigilância instalada pelo pai do diretor na rua de sua casa, no chamado “gueto” palestino da cidade de Ramle, capta mais do que o ato de vandalismo que se buscava desvendar. Transformando em dispositivo fílmico esse arquivo ordinário, como uma âncora a se agarrar às asperezas do cotidiano, em “Um Verão Incomum” Aljafari investiga os pequenos grandes acontecimentos que constituem essa comunidade, revelando a poesia em um horizonte de pixelada aridez. Ele toma as imagens como indícios de afetos e lembranças, assegurando uma existência incontornável a essas vidas que vibram em intensidade.
Direção: Kamal Aljafari
Título Original: صيف غير عادي (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 20min
País: Palestina
Neuroses e Afetos
Em retrospectiva da carreira do cineasta palestino Kamal Aljafari, a mostra Foco se encerrou no 10º Olhar de Cinema com o documentário mais recente do realizador, “Um Verão Incomum“. Uma forma de compartilhar afetos partindo de uma situação cotidiana e em um recorte temporal bem específico na trajetória de sua família. Ou melhor, na do seu pai, que há quinze anos instalou uma câmera de segurança posicionada na frente de sua casa para tentar identificar quem estava vandalizando seu carro, que ficava estacionado na calçada.
A obra dialoga não apenas com os encontros curatoriais do festival de Curitiba, mas também nos leva à cobertura de algumas semanas da Mostra Internacional de Cinema de Ouro Preto, que teve como arco temático “Cinema e Vigilância“. As novas configurações e dinâmicas das grandes cidades impactando na produção cultural desse audiovisual de dispositivo vão se apresentando nos festivais com uma mistura de experimentalismo e documentário investigativo que centra apenas nas imagens à disposição suas representações.
É o caso de “Um Verão Incomum“. O diretor pratica aqui uma extensa curadoria de algumas semanas de gravações daquela fachada. No entorno, o trânsito de pessoas mistura a observação do cotidiano com a investigação do crime, fato gerador que serve de provocação ao público. Aljafari, então, equilibrará o filme para que seu ritmo contemple as lembranças do passado – produzidas por tabela pelo pai, já falecido – com o grande objetivo do longa-metragem, se mostrar como a privacidade é um direito em extinção na sociedade contemporânea.
Sob a desculpa de revelar quem quebrou o vidro de um veículo, conseguimos unir informações (claro, com o auxílio dos intertítulos e narrações, pois somos estranhos àquela comunidade) que fornece informações precisas sobre a rotina de estranhos. Em determinado momento, o filme nos diz que “todos têm o direito de existir”, enquanto insiste em mostrar aquele território estático, que sabemos apenas como se configurava em 2006. Ao mesmo tempo em que essa revisitação é invasiva a um grupo de agentes, também possui o poder de imortalizar atos tão corriqueiros.
O mais interessante de “Um Verão Incomum” é que seu realizador não impõe um caráter à obra. Quem deseja analisá-lo apenas pelo viés persecutório, sentimental ou antropológico consegue unir elementos que nos mantêm atentos pelo tempo da sessão. Kamal Aljafari alia à sua curadoria de imagens um equilíbrio para que todos esses pontos sejam contemplados, como espirais que se embolam durante todo o percurso. E também deixa espaço para o vazio, como faz ao ensaiar adicionar informações sobre antecedentes de algumas pessoas ou mencionar comportamentos externos, que não temos a prova maior de quem usa o audiovisual como formador de discurso: a imagem.
Todavia, no melhor desses “vazios” estão as cenas noturnas. Nelas, pessoas passam correndo, sendo nossa visão limitada apenas um momento deste fato. Elas perseguem ou são perseguidas? Fogem do perigo ou o promove? Tentar responder a tais perguntas pode fazer com que o espectador supra a lacuna com preconceitos e estereótipos. Uma lição tanto para nós quanto para o pai de Kamal, que provavelmente guardou por mais de uma década essas representações sem chegar à conclusão alguma. Invertendo a lógico do que seria um desperdício de imagem, como acontece em qualquer esquina das cidades pelo mundo desde que a neurose nos consumiu.
Veja o Trailer: