Uma Noite em Miami…

Uma Noite em Miami... Filme Amazon Prime Video Crítica Pôster

Sinopse: “Uma noite em Miami…” é o relato fictício de uma noite incrível onde os ícones Muhammad Ali, Malcolm X, Sam Cooke e Jim Brown se reúnem e discutem seus papéis na luta pelos direitos civis e na revolução cultural dos anos 1960.
Direção: Regina King
Título Original: One Night in Miami… (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 54min
País: EUA

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Imobilidade Revolucionária

Uma Noite em Miami…” não necessariamente marca a estreia da experiente atriz Regina King na direção (ela dirigiu episódios de séries como “The Good Doctor, “This is Us” e um filme televisivo). Porém, será o trabalho que apresentará a boa parte do público essa nova função, lançado pela Amazon Prime Video no dia em que ela completou 50 anos de idade. E não haveria melhor forma de o fazê-lo, quebrando uma barreira histórica da indústria, sendo essa a primeira produção dirigida por uma cineasta negra a ser selecionada para o Festival de Veneza (que em 2020 realizou sua 77ª edição).

A partir de uma peça teatral escrita por Kemp Powers (adaptada por ele mesmo), o longa-metragem se propõe a um exercício de realidade paralela, onde quatro ícones da cultura afro americana dos anos 1960 se encontram em um quarto de hotel. Um texto bem mais envolvente do que as viagens narrativas que o primeiro terço de “Soul: Uma Aventura com Calma“. roteirizado e co-dirigido pelo mesmo Powers e recebido com uma empolgação exagerada na concorrente Disney+.

A premissa aqui vai de encontro com aquela que tratamos em nossa crítica de “Os 7 de Chicago“. Se lá os defensores da fidelidade histórica reclamavam que a narrativa fez concessões que alteram substancialmente a realidade, aqui a trama se assume ficcional – mesmo que usando personagens verdadeiros e abordagens que não se voltam contra o contexto dos Estados Unidos e da vida daquelas pessoas. É a união perfeita para evitar diálogos engessados e providos de uma lógica temporal.

O prólogo de “Uma Noite em Miami…” é extenso – e nos faz lembrar que a década de 1960 não está mais logo ali. King traça um panorama individual da trajetória dos quatro protagonistas, necessária dado o distanciamento para as novas gerações. Começa com Cassius Clay (Eli Goree) e a histórica luta contra Henry Cooper (Sean Monaghan) no estádio de Wembley, na Inglaterra. Antes de se tornar Muhammad Ali, naquele dia ele se consolidava um ídolo nacional a partir do boxe. Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) aparece na lendária boate Copacabana, que recebeu grandes nomes da música no coração de Nova Iorque desde sua abertura em 1940 – até o fechamento em maio de ano passado, como consequência do isolamento social provocado pela pandemia do novo coronavírus.

Confluências de sucesso, carreiras em ascensão, tudo isso se soma a uma maior liberdade e autonomia no gerenciamento de suas vidas. Até que surge Jim Brown (Aldis Hodge), running back do Cleveland Browns, que batia recordes de jardas corridas toda temporada do campeonato de futebol americano. Até hoje lembrando por muitos como um dos maiores atletas desse esporte em todos os tempos. Ele persegue o antigo desejo de se tornar astro de cinema e acabava de filmar “Rio Conchos“, faroeste dirigido por Gordon Douglas. Por fim, Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), fundamental no trabalho de conscientização e luta pelos direitos civis da época. Quando Clay luta pelo cinturão dos pesos-pesados contra Sonny Liston (Aaron D. Alexander) em 25 de fevereiro de 1964 e vence (perderia apenas na 11ª defesa, sete anos depois – com recuperação logo em seguida), os quatro homens se reúnem para comemorar a vitória.

O terreno se arma para um encontro que mostra a complexidade de lutas sob a ótica de indivíduos, que pensam diferente. Aqueles quatro ícones culturais se diferem em formas de agir, de crer e de administrar as suas vidas. Apesar de comungarem de um ideal da autodeterminação, esse se manifesta de formas distintas. Cooke, por exemplo, marcou a indústria fonográfica ao ter total controle sobre suas master tapes. O caso que ele narra, sobre a apropriação da música “It’s All Over Now” por parte do Rolling Stones (regravando The Valentinos, banda liderada por Bobby Womack), contribuindo para a Invasão Britânica nas paradas de sucesso dos Estados Unidos é emblemática: ali está alguém disposto a prosperar a despeito de leituras sociais sobre determinadas ações. Claro que as transformações de Cooke ou de Clay não acontecem em apenas uma noite – e Malcolm teria que esticar muito mais a corda em uma situação-limite para conquistar alguns feitos ali apresentados.

Ouça “Speak Now”, canção original de “Uma Noite em Miami…”

Todavia, ao imaginar a sequência de fatos sendo empilhada em uma mesma noite, conseguimos dimensionar as forças daqueles discursos – e como eles foram fundamentais para a alteração de certos posicionamentos. “Uma Noite em Miami…” também nos faz pensar sob perspectiva no desenvolvimento do nosso próprio pensamento crítico. Vale a pena assistir e refletir sobre o tempo que alguns ideais foram amadurecendo em sua mente – e tentar encontrar momentos-chaves que abriram caminho para tais conclusões.

Aqueles quatro permitiam diferentes instrumentos de mudança – pelo cinema, música, esportes, política, religião. Por mais que Cooke e Malcolm ganhem uma projeção maior pelo suposto antagonismo, os grandes momentos do filme são aqueles em que, democraticamente, todos têm voz. Questões que retornam nos debates contemporâneos, incluindo o colorismo (antes mesmo do termo ser academicamente cunhado, quase vinte anos depois). Este é ventilado por Brown em comparação da sua cor com a do fundador da Unidade Afro-Americana, uma organização que entendia que o rompimento é um caminho inevitável na luta racial conflagrada, de chagas abertas, que segue em curso nos Estados Unidos. O atleta, porém, não deixa de analisar que há certas interações dentro da comunidade, escolhas por vezes pautadas por reproduções de leituras racistas.

Ano passado, o documentário “Jair Rodrigues – Deixa que Digam” (2020) trazia interessantes depoimentos sobre a maneira como o cantor brasileiro usava sua voz, seu corpo e seu sucesso como arma política silenciosa. Já “Todas as Melodias” (2020) registrava o incômodo e indignação poucas vezes expostas por Luiz Melodia quando os olhares de alguns espaços o julgavam por ele, homem negro, ocupar aquela posição. Sam Cooke não precisava ir longe para mencionar situações onde o racismo se escancarava, a ponto de não poder entrar em determinados lugares – a não ser para exercer seu ofício. Da mesma maneira que Malcolm X elucidava certas questões na mente do cantor, a crítica sobre as dificuldades de entendimento dos discursos do ativista também era válida. E o são até hoje.

Isso porque não há como avançar em luta por direitos civis – e seus desdobramentos bem mais complexos do que o de sessenta anos atrás – sem aceitar a pluralidade de formas de expressão de descontentamento. Ser propositivo, incendiário, questionador, burocrata, pacifista… São apenas formas. O que não há espaço é para demagogia. “Uma Noite em Miami…” nos lembra de um hino desse período, “A Change is Gonna Come“, de um Sam Cooke assassinado tal como Malcolm X – sem que fosse esclarecido até hoje. A sociedade norte-americana segue esperando uma verdadeira mudança – sonhando que, em algum outro quarto de hotel, novos líderes se inspirem na obra de Regina King e comecem a escrever seus próprios destinos – tal qual a sua maneira, porém, em conjunto.

Ouça “A Change is Gonna Come”, de Sam Cooke:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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