Sinopse: Isolada na praia, a poderosa empresária Frederica (Andrea Beltrão) prepara a festa de réveillon que todos esperam. Em meio à crise do casamento com o fotógrafo Constantin (Alfredo Castro) que afeta diretamente a filha adolescente (Fernanda Pavanelli), ela ainda tem que administrar a vida e carreira do ícone pop Lenny (Marina Lima), que decidiu escrever uma obra misteriosa ao lado do escritor João Wommer (Ismael Caneppele). Quando uma criatura estranha surge do fundo do mar, a crise se instaura na teia de afetos e Frederica terá que enfrentar seu maior medo: a perda.
Direção: Esmir Filho
Título Original: Verlust (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 50min
País: Brasil | Uruguai
À Procura de Duendes
“Verlust“, dirigido por Esmir Filho, chega na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com grande expectativa. Reunindo grandes players do mercado audiovisual nacional (Globo FIlmes, Elo Company, Casa de Cinema de Porto Alegre, dentre outros), o longa-metragem estreia dentro da Mostra Brasil poucos meses após o lançamento de “Boca a Boca” (leia aqui nossa análise da primeira temporada), onde o cineasta é showrunner e diretor de parte dos episódios, dividindo a função com Juliana Rojas. Aqui ele repete a parceria com Ismael Caneppele, autor do livro que deu origem a “Os Famosos e os Duendes da Morte“, filme de 2009 do diretor revisitado pela Apostila em nossa preparação do episódio do podcast sobre a série da Netflix. A adaptação agora precede o lançamento editorial, que trará uma perspectiva diferente e desde já um livro de imediato interesse.
Isso porque Esmir é daqueles que conta suas histórias das mais diversas formas. Não tem uma fórmula nem em relação ao estilo nem ao objeto. Iniciar uma sessão de suas obras é encontrar o mesmo universo de possibilidades de uma leitura de Ismael. Uma forma de instigação antes mesmo do apagar das luzes ou da primeira virada de página. Aqui somos levados à casa de Frederica (Andrea Beltrão, que sepulta quem ainda tem dúvidas ser uma das grandes atrizes do cinema nacional), uma empresária do ramo da música que vive em uma luxuosa e quase inóspita casa na praia. Ela recebe um escritor que está colhendo entrevistas para uma biografia sobre Lenny (Marina Lima), cantora que tenta repetir o sucesso do auge da carreira desenvolvendo novos projetos. Enquanto isso, uma criatura gigante do mar encalha na encosta, mobilizando algumas pessoas na tentativa de salvá-la.
“Verlust” cria uma interessante perspectiva inicial, que fez sentido depois que conhecemos melhor a ideia por trás do livro a ser lançado por Caneppele. Esmir cria um prólogo todo do lado de fora da casa e nos apresenta de forma isolada todos os elementos de caracterização dos personagens centrais. O destaque é a jovem Fernanda Pavanelli, que interpreta a filha de Frederica. Ela toca um violoncelo que será o grande condutor da trilha da obra – sempre quebrada por músicas da própria carreira de Marina. Há muitos fatores intrigantes no longa-metragem, mas aquele que poderá torna-lo mais envolvente ao espectador que admira a artista é essa revisitação de sua própria obra. Os realizadores pinçam o álbum de 1991 de Marina como marco da carreira de Lenny, de onde surgiram as canções “Grávida” (que ela compôs com Arnaldo Antunes), “Não Sei Dançar” (de Alvin L) e o trecho de abertura com “Ela e Eu” (composição de Caetano Veloso, um dos compositores que melhor se encaixam na voz dela). Um dos grandes sucessos de venda, porém menos lembrado se comparado com o repertório de hits da década anterior.
Apesar de não conter parcerias com Antônio Cícero (seu irmão e agora membro da ABL), a menção a uma parceria de sucesso de Lenny nos remete de imediato ao irmão escritor. É uma espécie de ode ao pop nacional que se traduz em mais um elemento de inquietação do filme. Ao adentrarmos na realidade daqueles personagens, observamos que há uma faceta burguesa de um escudo anti-ocaso, muito comum a pessoas públicas que se reinventam para manter a relevância. Muitas vezes por simples cobrança da opinião pública. A própria festa de Réveillon que compõe grande parte do tempo de projeção de “Verlust” é uma subversão de um território de refúgio, que somente os ricos veem lógica.
Esmir Filho, então, desenvolverá algumas sequências totalmente dentro desta casa, em uma construção de planos médios. Posicionando elenco em transição constante e com excesso de diálogos, formatando uma linguagem mais teatral. O ato inaugural, por exemplo, quando destrinchamos a vida daquelas pessoas a partir das entrevistas e relações do escritor João Wommer (interpretado pelo próprio Ismael Caneppele), tem um ritmo próximo da primeira metade de “Deus da Carnificina” (2011), de Roman Polanski.
Porém, o cineasta, conhecedor da elite brasileira, sabiamente muda o curso de seu filme – e é impressionante como ele encontra a melhor forma de contar suas histórias. Dramas de apartamento aqui serão sempre carregados de muita hipocrisia e não como uma sessão de terapia desenvolvida com maturidade. Esmir parece sempre nos ambientar para um ponto de virada que se mantém em suspensão. No final do primeiro terço de “Verlust”, por exemplo, ele traz uma quantidade de enquadramentos difíceis ou estilizados (como um plano zenital em uma escada antecedendo um longo plano-sequência que traz mais de um cômodo da casa – como se olhássemos pela janela, do lado de fora).
Faz a presença do evento fantástico que ocorre na praia algo indiferente para algumas daquelas pessoas, com suas frustrações cada vez menos incontidas. O som da criatura tenta a todo instante reconectar o espectador ao que deveria, de fato, importar. Mas, o que inebria é a tentativa de ressurgimento desesperada dos humanos, encalhados em suas próprias lembranças. Lenny é a única que, de fato, tem o poder da criação nas mãos – mas, pensada como um fantoche, prefere assistir de camarote a derrocada de quem lhe é dependente.
Talvez aqui resida a grande representação criada por Esmir Filho. Vagando em busca de vida, usando João como ferramenta por ser ele um elemento transitório daquela rotina, Frederica sentencia em determinado momento o que está em jogo. É justamente essa relação de dependência, que vai desde consumo de produtos lícitos e ilícitos até o desenvolvimento de um ativismo atravessado da jovem, tudo com claro viés escapista. Só que refletido nas relações humanas, que parte da elite só entende pelo prisma de valorizações binárias. Portanto, a valorização de si passa pela desvalorização do outro. Se manter relevante passa por saber quem precisa de você, uma ideia tóxica de envolvimento.
Em uma narrativa que nos causa incômodo, “Verlust” nos mostra um escritor sendo absorvido por essa trama familiar dantesca e uma juventude fluida e desconstruída que não consegue se impor. Ao ser ver sem saída, os poderosos protagonistas adultos (invertendo a lógica de “Boca a Boca”) optam pelo silêncio – sendo este o mais genial elemento da odisseia hipócrita do filme e que nos acompanha do momento final aos créditos. Incomoda mais pelo essencial invisível aos olhos que surge na quebrada do mar, onde um oceano de possibilidades de salvação existe, mas não consegue ser percebido por personagens tão conscientes da maravilha que é serem eles mesmos.
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