Sinopse: Em Zinder, no Níger, no distrito marginal de Kara Kara dominado pelos chamados “palais”, a violência em seu estado bruto parece ditar as relações que sustentam o tecido social. Realizado na cidade natal da diretora, o filme interpela com franqueza as contradições dos sujeitos que constituem esse território, transitando sensivelmente entre o trauma – causado ou sofrido – e o desejo genuíno por mudanças. Empregando diversas abordagens documentais, o filme assume os riscos que emanam do seu próprio processo, no difícil limiar entre experiência pessoal e retrato coletivo.
Direção: Aïcha Macky
Título Original: Zinder (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 22min
País: Níger | França | Alemanha
Colônia de Marginalizados
Do sul do Níger, “Zinder” abre a mostra competitiva do 10º Olhar de Cinema com um documentário que escancara a relação de confiança dos personagens ali observados com sua realizadora, a cineasta Aïcha Macky. Uma troca que também chamou a atenção no filme de abertura, o brasileiro “O Dia da Posse“, mas aqui em contexto totalmente diferente. A socióloga e ativista social possui vínculo territorial com aquele espaço, mas precisa ocupá-lo na dinâmica de um discurso que contrapõe sua obra anterior mais conhecida, “L’Arbre Sans Fruit” (2016), que tratava da infertilidade feminina.
Ela adentra um universo majoritariamente masculino, com alguns cruzamentos possíveis. A cidade de Karakara, no sul do país, ficou estigmatizada por ter sido parte de uma política estatal de transferência de pessoas acometidas de lepra há algumas décadas. Sem perspectiva, a colônia de seres à margem da sociedade ganhou outros desdobramentos nos anos seguintes e hoje é o centro de uma disputa de gangues locais, no qual a violência foi naturalizada no mais alto grau. Soma-se a proximidade da fronteira com o norte da Nigéria, dominado pelo Boko Haram e encontra-se um ponto que atrai questões que seus agentes não se sentiriam confortáveis de reconstituir ou reproduzir ao simples ligar de uma câmera.
Na entrevista para o canal oficial do festival no YouTube, que você ao final da crítica, Macky menciona um processo de oito anos entre a ideia e o corte final. Ou seja, nesse período, suas representações de corpos femininos, enquanto uma acurada documentarista, foram se costurando em paralelo e dando a ela projeção. Essa realização, estreando no Brasil pelo Olhar de Cinema, não é – enquanto premissa – um contraponto em sua carreira. É mais uma proposta de registro de tecidos sociais rugosos, pela visão de quem as legitima.
Veja o Trailer:
Sendo assim, “Zinder” se inicia de uma maneira emblemática. Ela acompanha uma moto em que dois palais (assim denominado os membros de gangues), circulam pela cidade ostentando uma bandeira com a suástica nazista. Relacionam a imagem com Hitler, supostamente um guerreiro invencível, na cabeça deles um “americano”. Essa Tropa de Hitler, como ele se denominam, se reúnem para se exercitar e manter o corpo na melhor forma. Mais adiante a narrativa do longa-metragem usará como uma de suas guias as cicatrizes, o que dá um aspecto dicotômico a esses corpos vigorosos – e confirmado pela diretora como um dos principais aspectos do filme.
Isso porque, ao mesmo tempo que há uma preocupação em relacionar a estética da gangue à força física – o que seria desnecessário em virtude do arsenal de armas brancas que eles ostentam e ressignificam – as marcas que eles carregam consigo tem histórias bem mais complexas que a rotina marginalizada de sobrevivência. Um deles utiliza em sua fala as cicatrizes como argumento para ter abandonado a vida do crime. Já outro as elenca com orgulho para a câmera de Aïcha, que se apresenta nos créditos iniciais como “uma filha dos palais”.
Apesar de não-unânime, o Boko Haram é vinculado ao heroísmo por alguns, algo natural em um ambiente de violência naturalizada que tem, nos vizinhos, uma simbologia forte do poder que eles almejam. Entretanto, os interesses da sua comunidade parecem formar a régua de corte dessa admiração. Mais adiante, acompanhamos uma ação que visa contrabandear gasolina pela fronteira, para tornar o combustível e a energia mas acessível, com a intenção, dentre outras, de ampliar seu poder de influência na localidade.
Em uma entrevista na qual a Apostila de Cinema participou, o médico Drauzio Varela falou do que o motivou a escrever o livro “Carcereiros”, adaptado em versão documental em “Encarcerados” (2019). E ele define aqueles espaços em que ele transitou como algo criado pelo Estado para concentrar um problema que ele não quer resolver – e com o apoio da população inconsciente. A política de encarceramento também aparece no meio e na ponta final de “Zinder“. Assim como a preocupação com o legado em uma sociedade que já observa seus adolescentes seguindo o caminho da prostituição como uma – e talvez única – via possível.
De fato, um território que as autoridades desenvolvem, enquanto ficção, para reunir e silenciar vozes e corpos. Mais um que nunca mais serão ignorados e passarão a ser cada vez mais visíveis, por força do trabalho de pessoas como Aïcha Macky.
Assista à conversa de Carla Italiano com Aïcha Macky sobre “Zinder”: