Taguatinga 2020 | Sessão 06 da Mostra Competitiva

Sessão 06 da Mostra Competitiva

A Sessão 06 da Mostra Competitiva do Festival Taguatinga de Cinema 2020 fala de identidade em mais de uma forma de construção. Diferente de recortes curatoriais que tendem a nortear-se em questões de ancestralidade, corporalidade ou até o desenvolvimento laboral, os três curtas-metragens seguem linhas paralelas, para chegar a distinções conclusões. Todas elas, porém, mostram faces de um Brasil fora do eixo, que sobrevive apesar do que se é valorizado pelos comandantes da nação.


Crises Tóxicas

Reduto

Reduto“, que abre a Sessão 06 da Mostra Competitiva, é uma produção bastante pessoal de Michel Santos. Apresentado como conclusão de seu curso de graduação em Cinema na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), ela se inicia como uma jornada academicista ao evocar Walter Benjamin e a constituição do passado. A busca de identidade do jovem cineasta passa pelo apagamento do passado do distrito que passou a se chamar Luís Eduardo Magalhães em 2000 – após referendo com a população local, meses após o falecimento do político de mesmo nome, filho de ACM.

Santos faz uma narração meio low profile, que lembra muito a forma impressionista com a qual Petra Costa se vale em suas obras. O filme ganha força pela temática e por desenvolver bem a crise de identidade de um homem que, filho de gaúchos e morador de uma localidade considerada “o Sul do Brasil na Bahia”, se vê perdido em seus valores, em suas referências, em sua cultura. Michel replica a franqueza da cineasta citada, ao esmiuçar o que o agronegócio faz na região onde viveu até chegar ao curso de Cinema. Usa arquivos que combinam vídeos institucionais e comerciais para debater como a linguagem audiovisual é utilizada com propósitos antagônicos aos seus. Conclui que chegou a certo nível de consciência, onde percebe que a maneira como grandes empresas do setor – todas estabelecidas no Brasil, mas de origem norte-americana ou européia – o agridem com suas políticas de promoção da morte com a má qualidade dos alimentos.

O primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro foi marcado, entre outras coisas, pela liberação desenfreada de veneno para as nossas mesas. No final de 2019, já eram quase quinhentas liberações pelo Ministério da Agricultura – isso antes do colega da pasta do Meio Ambiente propor, no meio da pandemia, “passar a boiada”. De forma acidental, “Reduto” dialoga muito com “Chão” (2019), longa-metragem objeto do nosso texto imediatamente anterior. A diferença é que Michel Santos parte da pessoalidade, para cutucar a ferida do quão tóxica está a nossa realidade. O hino oficial, da Bahia, em seus versos nos conclamando contra a tirania, surge como uma fina ironia.


Anistias Destruidoras

Tupinambás – Vozes da Caminhada Sessão 06 da Mostra Competitiva

Falando em Ministério do Meio Ambiente, “Tupinambás – Vozes da Caminhada“, de Rodrigo Brucoli, fala de outra formação de identidade. Também representando a Bahia, o curta-metragem se origina em uma caminhada do grupo representando os Tupinambás em direção ao território de uma antiga igreja jesuíta, pedaço de terra nunca devolvida aos indígenas. Com isso, o filme colhe depoimentos sobre o constante processo de etnocídio sofrido pelos povos originários do Brasil. Aqui a verbalização é mais latente, com discursos sobre o apagamento da memória.

Mais do que tratar da territorialidade e da questão identitária pelo viés da ancestralidade, a obra de Brucoli traz um assunto ignorado pela grande mídia e que merecia (muito) ser discutido. A curta duração não permitiu que se desenvolvesse esse escopo, infelizmente. Mas quem se atenta para o grande cartaz que abre a caminhada daquelas pessoas deve se questionar o que seria o Marco Temporal de 1988. Trata-se de uma das formas mais sórdidas de se acabar com qualquer política de emancipação dos povos originários e respeito às suas culturas – assumindo de vez que o desenvolvimento deles será limitado pelas garras estatais.

As discussões sobre o Marco Temporal de 1988 se relacionam a três ações apresentadas junto ao STF (Supremo Tribunal Federal). Duas deles se resolveram em 2017, quando o Estado do Mato Grosso não obteve indenizações, a qual entendia fazer jus, por demarcações de terras ocorridas nas décadas de 1970 e 1980. Uma terceira ação, que discute a legalidade de remarcações após a promulgação da Constituição Federal em 1988, seria julgada na mesma semana – mas teve o pedido de retirada de pauta acatado e se mantém em aberto até hoje. Adentrar nessa questão e ver negado o direito de novas remarcações de terras indígenas é um atestado de óbito a futuros resgates culturais, ampliando o etnocídio apresentado em “Tupinambás – Vozes da Caminhada”. Um país que, sempre que é constrangido a fazer suas reparações históricas, se sai com uma cartada de anistia. Ampla e geral, para valer a pena para o opressor e deixar para o oprimido todo o prejuízo.


Consciência e Afastamentos

De Domingo a Domingo Sessão 06 da Mostra Competitiva

Já em relação à alimentação saudável, encerramos a sessão do Festival Taguatinga de Cinema com “De Domingo a Domingo“, de Marcus Vinícius de Oliveira – representando o Estado do Amapá. Único curta-metragem da Região Norte selecionado (fizemos uma análise de todos os que participam da Mostra Seleção Popular nesse link), traz a vida de um horticultor agroecológico pelo viés do trabalho. O que fazemos, os ofícios que desempenhamos, também faz parte de nossa identidade. O que o protagonista faz é aplicar suas vivências e seu entendimento de mundo em conceitos muito maiores – talvez inescapáveis até à sua própria consciência.

Da mesma maneira que ele, também me sinto bem ao acordar cedo. A ideia de que o mundo dorme enquanto você o ajuda a ser construído (e me dói muito ter seguido durante o isolamento social o caminho completamente oposto). Aquele senhor traduz em trocas de energias com o planeta o sentimento bom de levantar às 4:30 da manhã. O curta-metragem, alinhado com imagens que retratam bem o ambiente verde no qual se insere a vida do documentado, se revela um fluxo de consciência de um homem que sabe o peso e a importância do que faz. Quando ele entende que pode ampliar essa visão, nos fornece pílulas de conhecimento que vão da alimentação orgânica até a maneira com a qual os governantes conduzem a política nacional.

“De Domingo a Domingo”, como o nome já diz, traz um Brasil que não descansa. Aquele que, se parar, nos destrói em pouco tempo. Mesmo sem tempo para sequer refletir questões filosóficas, conta com um protagonista que conseguiu usar a forma prática com a qual pensa sua vida a favor de uma construção de identidade, que nada tem de acidental ou residual. É apenas a própria consciência agindo por conta própria, usando as ferramentas que têm a seu dispor.


Ficha Técnica da Sessão da Sessão 06 da Mostra Competitiva

Reduto (Michel Santos, 13″ – 2020, Bahia)
Sinopse: Um filme sobre imagens e imaginários.
Tupinambás – Vozes da Caminhada (Rodrigo Brucoli, 15″ – 2019, Bahia)
Sinopse: Há 19 anos, todas as aldeias da terra indígena de Olivença, na Bahia, se reúnem na caminhada tupinambá. suas vozes expõem a força dos mártires do passado e as principais lutas que os povos indígenas enfrentam hoje para poder exercer a sua identidade.
De Domingo a Domingo (Marcus Vinícius de Oliveira, 14″ – 2018, Amapá)
Sinopse: A poesia no dia a dia de domingos gomes, um horticultor agroecológico que conduz o mundo das plantas com muita sabedoria, dedicação e cuidado, no interior da Amazônia.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

2 Comments

  1. Há um equívoco, os municípios de Cachoeira e Luis Eduardo Magalhães são lugares totalmente distintos, Cachoeira está no recôncavo baiano e Luis Eduardo no oeste do estado.

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