Patrimônio

Patrimônio

Sinopse: Patrimônio retrata a luta de três anos de uma pequena comunidade na costa pacífica mexicana contra um mega-empreendimento norte-americano. O projeto imobiliário, tido como “sustentável” e “holístico”, ameaça o acesso da comunidade de pescadores à já escassa água, à costa e ao seu patrimônio.
Direção: Lisa F. Jackson e Sarah Teale
Título Original: Patrimonio (2018)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 25min
País: México | EUA

Patrimônio

Destruindo o Quintal do Vizinho

Em “Patrimônio” temos contato com uma nova manifestação imperialista norte-americana, um neocolonialismo que se vale da especulação imobiliária para ampliar seus tentáculos. As diretoras Lisa F. Jackson e Sarah Teale nos mostram uma realidade bem diferente dos grandes vazios dos centros urbanos, que o documentário “Push: Ordem de Despejo” tão bem tratou na abertura da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. Ao mesmo tempo em que espaços são desocupados em algumas áreas para valorizar artificialmente propriedades, aqui a ideia é inflar uma cidade, multiplicando sua população por três. Destruindo o meio ambiente e as formas de subsistência de uma comunidade, sob a desculpa de exploração turística e a implantação de um campus universitário a ser preenchido por pessoas sem qualquer vínculo com aquele território.

Essa é a descrição crítica do que o longa-metragem aborda, com o agravante de ser um projeto dos Estados Unidos (a partir da empresa Black Creek) em território mexicano (por uma subsidiária com pouca autonomia chamada Tres Santos). Um empreendimento vendido como “epicentro do bem estar”, mas que – já no início das obras – gera um reflexo muito parecido com o que a construção do Porto do Açu fez com algumas praias da área de Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Uma reconfiguração total de uma área, em que o mar é suprimido em algumas partes e avança como nunca antes se viu em outras. As encostas recebem uma quantidade de pedras enormes que tornam inviável a utilização para lazer ou pesca. No caso mexicano o fato gerador foi a mudança do leito de um rio, feito para alimentar a obra e, futuramente, os hotéis e prédios universitários ali estabelecidos. Isso afeta a comunidade de pescadores, que se organiza para questionar a validade do empreendimento.

Aqui no Brasil nada aconteceu. As obras do porto, gestadas por Eike Batista na gestão de Sérgio Cabral, seguiram de vento em popa. Lá em Todos os Santos, cidade onde “Patrimônio” concentra suas ações, a população não se fez de rogada. Um documentário muito direto em sua abordagem, que segue logo para a importância da organização civil em situações como esta. Isso se explica pelos desdobramentos, que levam os dirigentes eleitos para liderar as negociações a traírem as convicções da maioria. Uma faceta da Humanidade, infelizmente, muito comum. A obra que seguiria a sessão da Ecofalante, chamada “Dolores” traz uma mulher que seguiu o caminho contrário ao daqueles falsos líderes.

É nesse ponto que ganha importância o advogado John Moreno. De mãe estadunidense e pai mexicano e com fluidez tanto no inglês quanto no espanhol, ele é a peça-chave de “Patrimônio”. Um operador da lei que não deixa as suas convicções perderem para a possibilidade de ganhos pessoais – e paga um preço bastante alto por isso. É pelos depoimentos dele que tomamos conhecimento da família Salina de Gortari, umas das mais poderosas do México. Carlos, representante do clã, foi Presidente do país entre 1988 e 1994, um mandato marcado por escândalos de corrupção. Também recebemos detalhes do processo e greenwashing que a Tres Santos faz, ao vender seu empreendimento como o supra sumo da sustentabilidade, quando aplica as mais sórdidas técnicas de destruição de um ecossistema. Se vale da total ausência de transparência no projeto, reflexo de uma comunidade completamente ignorada.

O documentário também é atraente ao espectador porque traz mais do que uma sequência de testemunhos e registros de romarias por órgãos públicos na luta por justiça. Adiciona histórias, sem qualquer viés sensacionalista, mas que servem bem à montagem do longa-metragem. Chama a atenção a naturalidade com a qual autoridades se permitem serem filmadas. Policiais e oficiais de justiça sabem que seus atos opressores estão sendo registrados e lidam bem com isso – além de tratar com respeito aquelas pessoas. Parece que a população de Todos os Santos em geral não aceita aquele empreendimento, mesmo o que estão ali cumprindo funções institucionais. Só o Governo que segue dando carta branca a uma empresa de capital estrangeiro.

Fica a dúvida se essa atuação vista em “Patrimônio” é algo cultural ou se a conclusão pensada no parágrafo acima é válida. O fato é que o filme é um dos poucos em que encontramos o que podemos classificar de final feliz e talvez a consciência de nossas funções dentro da sociedade (seja como líder de uma comunidade, agente da lei e principalmente advogado), com pensamento crítico e sem ultrapassar limites morais e razoáveis, tenha contribuído fortemente para esse entendimento.

Clique aqui e confira nossa cobertura completa da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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