Sinopse: Segundo o mito originário do povo chukchi, o ser humano nasceu da união da mãe primordial com uma baleia. Homem e baleia viveram felizes por muito tempo, até que um homem matou seu irmão baleia. A partir de então, a fome e o sofrimento prevaleceram na terra. Para os chukchis, descendentes da mais antiga tribo siberiana, a caça anual de baleia é não só uma tradição, mas uma necessidade para sobreviver ao longo inverno de uma das regiões mais inóspitas do mundo, na localidade de Lorino, próxima ao Estreito de Bering. Enquanto esperam pela captura da presa, compram sua comida a crédito no supermercado mal abastecido da aldeia. Do alto, um busto de Lênin observa a praça da vila, em memória de uma época que também marcou profundamente a vida aqui, embora talvez de maneiras menos visíveis.
Direção: Maciej Cuske
Título Original: Wieloryb z Lorino (2019)
Duração: 59min
Gênero: Documentário
País: Polônia
Quando a Harmonia Vira Opressão
“A Baleia de Lorino” é um dos filmes mais crus e, ao mesmo tempo, poéticos da edição 2020 da Mostra Ecofalante de Cinema. A sinopse oficial, que sempre deixamos como abertura dos nossos textos, é o exato contexto trazido pelo cineasta polonês Maciej Cuske na sequência inicial da obra – que se vale das imagens dos mares siberianos onde as ações do filme ocorrem. O diretor, que se arriscou na ficção em 2013, mas faz carreira nos documentários, estava há quase uma década sem lançar um longa-metragem.
Aqui ele se vale da pouca verbalização, expediente parecido com “Honeyland” (2019), da Macedônia do Norte, que circulou por grandes festivais com muita empolgação da crítica, mas perdeu o Oscar de melhor documentário em 2020 para a produção sob encomenda “Indústria Americana” (2019). Deixa no fruir da imagem e na captação dos sons nossa construção daquele território. Depois dessa abordagem mitológica, a primeira sequência choca ao trazer a coloração vermelha no mar, onde as ondas batem sem que pudéssemos ver – apesar já percebermos – que uma baleia havia sido capturada.
A população na costa retalha o animal, que virará mercadoria em sua carne e pele – além de comida para as alcateias dos lobos que circulam na região. Em menos de uma hora, “A Baleia de Lorino” traz a grande questão que provavelmente nunca conseguiremos resolver. O respeito total dos humanos pelos animais é uma realização utópica porque as funções de alguns bichos são pré-determinadas por uma cultura que não muda de uma hora para outra – e sem grandes motivações e entendimentos. Por mais que a lenda diga que homem e baleia vieram da mesma união de seres e que essa harmonia foi rompida pela ação de apenas um de nós, a dinâmica daquela comunidade já transformou essa harmonia em opressão.
É fácil julgar o outro do alto do nosso conhecimento, informações e práticas culturais bem mais flexíveis pela facilidade de acesso a bens e produtos. Nas grandes cidades, nesse ar cosmopolita e com o poder de discursos que as mídias sociais fornece, é muito tranquilo tratar essas relações como se estivéssemos dentro de um laboratório social. O filme de Cuske, portanto, faz uma provocação pela imagem que exige do espectador a imersão naquela cultura. O pouco que verbaliza nos nivela à educação dada às crianças locais. Não apenas porque nos insere em uma visita ao museu e em uma sala de aula, mas porque a câmera do diretor se posiciona como mais uma delas dentro do grupo.
Na escola, o professor tenta convencer os alunos de que os humanos são diferentes dos animais porque não são totalmente selvagens. Define a forma assertiva e racional com a qual agimos como “comportamento humano”. Ele, na verdade, está contrariando todos os atos que assistimos antes e depois de sua fala. O cineasta retoma o ciclo de morte, não sem antes deixar claro que a caça às baleias – meio de sobrevivência daquele povo – é outro ponto que sofre abalo com as profundas mudanças que o planeta sofre.
“A Baleia de Lorino” consegue, então, na poesia das belezas de suas imagens, enxergar a crueza de uma sociedade que se mantém a partir da morte. Quando falamos de respeito à cultura, o reducionismo só prejudica nossa visão. O filme de Maciej Cuske é uma excelente maneira de deixar de lado as concepções prévias e enxergar que a Humanidade adapta, mas também é adaptada, pelo meio onde se encontra.
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