Leia o Artigo | Entre a Gênese e o Apocalipse, sobre a Mostra Tiradentes | SP.
Artigo | Entre a Gênese e o Apocalipse
Retornando para a programação da Mostra Tiradentes | SP de 2021, as seis produções apresentadas na Mostra Olhos Livres da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes se unem pelo uso da provocação de sentimentos muito potentes enquanto indivíduos e sociedade. Todavia, a curadoria de Francis Vogner dos Reis e Lila Foster, refletida na forma como a programação dos debates se deu na edição mineira, parece subdividir o recorte em duas categorias, como desdobramentos temáticos.
De um lado, filmes que trazem um olhar humanizado sobre passado, origem, ancestralidade. Usa as relações mais diretas entre as pessoas, que vai da amizade à família, passando por uma comunidade. Dois documentários, assumidos com força enquanto linguagem e uma ficção que usa a fantasia – e a música – enquanto condutores da narrativa, mas que evocam um realismo de representação que não deixa de se aproximar dos outros da trinca.
Do outro, filmes que nos deslocam para frente do nosso tempo, seja por alguns anos ou centenas deles. Três ficções com alta dose de distopia, parte dela já identificada na realidade do país.
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Começamos a falar da Mostra Olhos Livres com o primeiro trio. “Amador” nos traz a história de Vidigal, um artista de rua, que sofreu as consequências do preconceito e da invisibilidade. A cineasta Cris Ventura monta imagens de suas performances e falas, objetivando ser um registro de sua criatividade. Um trabalho difícil da realizadora, que tinha em mãos um material de forte carga sentimental. Com o falecimento do protagonista em 2019, após ter uma crise de convulsão e não ser atendido a tempo, a diretora precisou montar uma obra que entendia incompleta. Em nosso texto falamos da relação com “Ostinato“, média-metragem de Paula Gaitán que abriu o festival. Só que aqui o peso da vida é o grande assunto e como dificilmente temos a consciência de quais encontros serão os últimos.
Pensar nisso em um momento como esse é ainda mais dolorido. Estamos vivendo a maior crise sanitária da nossa sociedade, sendo consumidos por uma pandemia que tira do nosso convívio, sem despedidas, milhares de pessoas. Em um contexto de fragilidade ainda maior na nossa existência, “Amador” traz uma história de um passado recente que sensibiliza pela impotência sentida em nosso presente.
Olhando mais para trás, “Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!” se propõe a marcar posição em relação aos territórios usurpados do povo maxakali, mas vai muito além disso. Durante essa nova cobertura, conversamos com Carolina Canguçu e Roberto Romero, diretores do documentário, ao lado de Isael e Sueli Maxakali. Um registro de espaço que ganha novos contornos em uma fase onde os povos originários, sempre perseguidos, assistem o atual Governo Federal usar a política da morte (ou da ausência de respeito pela vida) como mola propulsora e incentivadora.
Um filme finalizado durante a pandemia, que adicionou dificuldades ao processo. Enquanto realizadores, Carolina e Roberto se colocam com a câmera na mão, após anos de pesquisas, experiências e produções vinculadas ao cinema indígena. A ideia de aliado é muito forte, em um longa-metragem que traz contextualizações sem soar didático, que foge do tradicionalismo engessado de linguagem, mas não se escusa de valer de uma abordagem mais clássica em certos momentos. Com isso, o vencedor da Mostra Olhos Livres talvez seja a obra com maior poder de comunicabilidade, de atingir um público não iniciado em algumas questões – e que, esperamos, tenha se aproximado da produção brasileira contemporânea com as possibilidades do formato online da Mostra Tiradentes.
Encerrando o primeiro trio, “Irmã” conta a história de Ana e Julia pelo olhar da dupla de diretores Luciana Mazeto e Vinícius Lopes. Uma obra que toca no tema universal da chegada forçada da maturidade, quando a criança e a jovem precisam se deslocar para o interior do Rio Grande do Sul para encontrar o pai, por conta do agravamento da doença da mãe. Depois de duas produções que mexem com os sentimentos a partir do discurso direto, o filme de Luciana e Vinícius prima por uma indefinição de gênero narrativo.
Essa dinâmica pode atrair tanto quanto repelir espectadores. No caso da Apostila de Cinema, a conexão foi intensa, a partir do lúdico que as sequências fantásticas permitem, passando pelas inserções na trilha do trabalho de Karina Buhr. Ser desafiador pelo viés da imprevisibilidade enquanto narrativa é a grande característica de “Irmã” e destoa dos outros dois longas-metragens já citados, que encontram suas qualidades a partir de outros elementos.
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Até que o sentimento a partir das lembranças, das origens de um povo, das conexões territoriais e dos laços familiares ficam de lado e, no outro trio da Mostra Olhos Livres, olha-se para uma idealização de futuro na vã tentativa de entender o presente. Ancestralidade e territorialidade não deixam de ser temas que o perpassam, mas a partir de premissas menos óbvias nesse sentido.
“Voltei!” é o recado de Ary Rosa e Glenda Nicácio. Sempre de volta à Mostra de Cinema de Tiradentes, seus trabalhos enchem de expectativa o público cativo do evento. Com proposta parecida com o filme apresentado no ano passado, “Até o Fim“, o novo longa-metragem reúne três irmãs que, no ano de 2030, ouvem o julgamento do líder da nação, que na última década promoveu todo o tipo de tragédia em nossa sociedade. Radinho de pilha e lampião, por que não? Em 2020 há quem volte a usar o fogão na lenha e preciso recorrer a poço artesiano para ter acesso ao básico: comida e água. Saneamento muitos nunca tiveram.
Desta forma direta, Ary e Glenda encontram a força necessária para o discurso do filme. Entre as distopias que aparecem nesse recorte proposto, é aqui que o espectador mais tradicional se relacionará bem com as referências e o conteúdo crítico, tal qual a leitura de “Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!“. Experientes no modus operandi de um cinema brasileiro contemporâneo, que já mostrou seu valor, as maneiras de inovar e agora assiste ao novo desmonte da Cultura mantendo o desejo de seguir vivo. Rosa e Nicácio parecem prontos para irem adiante, ultrapassando esse espaço há muito ocupado e dominado por eles.
Na outra ponta, a juventude do Chorumex nos dá “Rodson Ou (Onde o Sol Não Tem Dó)“. Com direção de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra, a produção custou R$ 1.200,00 e se coloca ao lado de grandes representantes do audiovisual do país. Ambientado no ano 3.000, estamos sob a égide de um governo anarcocrenty. A obra nos faz pensar sobre até onde vamos nesse processo de desinformação e paranoia que, atrelado a uma ideologia fascista, nos faz duvidar e temer de tudo e de todos. Só que o filme faz isso sem a menor disposição de fazer concessões. O Coletivo joga em um liquidificador de sucata, lixo e chorume todas as referências e técnicas de linguagem.
Ao contrário de boa parte das produções (à exceção de “Irmã” enquanto gênero cinematográfico), a grande característica de “Rodson” é a indefinição, que surge como ferramenta libertária. Jornalismo, mídias sociais, vídeo games, clipes musicais… Espere todas as possibilidades – nessa que é a grande provocação dentre as provocações da Olhos Livres. Como disse Cleyton Xaiver em entrevista concedida à Apostila de Cinema, cada sequência demandava um estilo e a produção, bem como a montagem, aplicam as melhores soluções (pensadas e possíveis) em cada caso.
Por fim, “Subterrânea” nos leva ao velho Rio de Janeiro. E aqui, como todo carioca sabe, o apocalipse é agora! Em uma narrativa de aventura, da forma de um desdobramento que se vincula logo à franquia Indiana Jones e as construções a partir da releitura da História gestadas por Dan Brown, o longa-metragem de Pedro Urano é, dentre os seis, aquele mais pronto para o mercado, para o consumo enquanto produto. Silvana Stein e Negro Leo incorporam bem os personagens em uma trama que entrega tanto a quem procura entretenimento até quem busca como pano de fundo debates urgentes.
Esses se vinculam ao território de uma cidade que não consegue se entender porque ela se destrói sob a desculpa da reconstrução desde que foi “fundada”. É possível que São Sebastião ganhe adicional para cuidar do Rio de Janeiro, porque é um lugar que se revela seu próprio antagonista. Pedro Urano também concedeu entrevista à Apostila de Cinema, quando disse que, originalmente, “Subterrânea” seria um documentário. Talvez o Rio, que ainda se mantém como (um dos) espelho cultural do Brasil, há muito testa a ruptura entre ficção e realidade, pela forma surreal como as coisas acontecem aqui.
Não deixe de assistir aos seis filmes, que ficam disponíveis até à 23:59 do dia 24 de março. Deixo abaixo um índice com as críticas separadas de cada um deles, escritas por mim e por Roberta Mathias durante a 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes – além das entrevistas com alguns dos realizadores da Mostra Olhos Livres.
Lista de críticas dos filmes:
Amador
Irmã
Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!
Rodson ou (onde o Sol não tem Dó)
Subterrânea
Voltei!
Lista de entrevistas:
Carolina Canguçu e Roberto Romero, diretores de “Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!”
Cleyton Xavier, diretor de “Rodson ou (onde o Sol não tem Dó)”
Pedro Urano, diretor de “Subterrânea”
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