Leia o Artigo | Provocações de um Cinema Multifocal, sobre a Mostra Foco.
Artigo | Provocações de um Cinema Multifocal
Nosso segundo passeio pela safra de produções de Tiradentes de 2021 termina com os onze curtas-metragens da Mostra Foco, reapresentados durante o período da Mostra Tiradentes | SP. A vitória de “Abjetas 288” não pode ser considerada uma surpresa, porque a forma como a curadoria do festival atua nos entrega tantas possibilidades que qualquer resultado soa imprevisível. Neste ano, um grande alcance territorial permitiu que várias temáticas se entrecruzassem. O público encontrou três sessões bem diferentes, sempre com a certeza de uma nova provocação quando a obra seguinte se iniciava.
Abrindo a Série 1 da Mostra Foco, “Drama Queen” de Gabriela Luiza é um dos poucos filmes da edição que trata diretamente da pandemia da covid-19. Em meados de janeiro, dias antes de iniciar a edição mineira, a Apostila de Cinema conversou com Felipe André Silva e Camila Vieira, dois dos três curadores de curtas-metragens de Tiradentes, ao lado de Tatiana Carvalho Costa. Lá eles confessaram que o volume de inscrições que traziam nos curtas-metragens assuntos como isolamento social e o confinamento foi grande. Todavia, eles observaram um alinhamento estético que soaria repetitivo, apesar de grandes histórias serem contadas.
Portanto, “Drama Queen” pode ser considerado um destaque, por atingir enquanto fragmento do tempo em que vivemos o grande desafio da manutenção da produtividade – usando-a como ponto inicial de outros debates que se acumularam na sociedade brasileira. Algo que “A Destruição do Planeta Live“, de Marcus Curvelo, de certa forma, complementa. O cineasta também esteve presente na Mostra Aurora ao lado de Leon Sampaio com “Eu, Empresa“, uma das melhores produções do festival. Aqui ele segue o caminho da crítica pela ironia e pelo deboche, apesar de menos universal e mais experimentalista que o longa-metragem, que usa a comédia como ferramenta para falar também de produtividade e da meritocracia no ambiente digital.
Trata-se de duas produções que conseguem atingir essa nova questão sem esquecer o que passamos enquanto país antes do coronavírus chegar. Deixá-las de lado em prol de um registro de seu tempo não seria coerente com o trabalho criterioso da curadoria, conhecida há anos por nos trazer boa parte dos grandes destaques do audiovisual brasileiro contemporâneo. Isso nos leva a “Céu de Agosto“, de Jasmin Tenucci, que consegue atravessar temas duros, a partir da protagonista, com a inesquecível interpretação de Badu Morais. Por sinal, foi com ela (ao lado das atrizes de “Abjetas 288”, Débora Arruda e Dandara Fernandes, e de “Novo Mundo”, Mohana Uchôa) um dos melhores debates deste ano, sobre Atuação, Performance e Construção de Cena, com mediação de Camila Vieira.
Torcemos, por sinal, que fique o registro desses encontros no canal oficial da Universo Produção, porque todos os filmes da Foco terão longa vida pela frente e seus realizadores e equipes serão descobertos por um público cada vez maior. Como, por exemplo, o provocador “Lambada Estranha“, de Luisa Marques e Darks Miranda. Uma dupla do Rio de Janeiro que traz a junção de imagem e memória em uma produção que nos coloca na distopia carioca causada pela água, a mesma que já me fez ir duas vezes no mercado essa semana porque a companhia de fornecimento entrega esgoto pelas torneiras. Luisa vindo da montagem e do aprofundamento de estudos sobre narrativas e Darks das artes visuais, onde ocupa importantes espaços a elas voltados, sendo selecionada também para o projeto IMS Convida ano passado, em um trabalho que beira o indescritível pela forma como a ideia de uma lambada estranha no Rio pós-apocalíptico se impõe e nos contagia.
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Nessa confluência de linguagens e óticas, a Série 2 da Mostra Foco trouxe mais quatro curtas-metragens. O primeiro, “Ratoeira“, de Carlos Adelino, segue nessa trajetória de fim de mundo (que já tratamos em nosso artigo sobre a Mostra Olhos Livres) e traz o artista catarinense Neném Maravilha no papel de um técnico em eletrônica que precisa lidar com o “novo lixo”, produzido por nós por força de nossa dependência cada vez maior de tecnologias.
Há alguns anos travei um debate com minha colega de Apostila, Roberta Mathias, sobre a possibilidade de diminuição da intensidade de consumo ser liderada pela produção cultural, hoje um cada vez mais utópico minimalismo socialmente aceito. Essa foi uma das inúmeras vezes em que uma capricorniana descrente e desconfiada tentou dialogar com um taurino teimoso e a conversa se encerrou sem conclusão (ou com duas). No ambiente online dos festivais, fomos confrontados com questões que o filme de Adelino perpassa. Sentimos falta do deslocamento físico, no processo que parece comprovar que falhou o objetivo de transformar nossa casa em um bunker que tiraria nossa necessidade de transitar por espaços. Isso se deu a partir do momento em que isso se tornou a única opção.
Por outro lado, cada vez mais as telas ampliam sua demanda sobre nossos corpos e a ampliação das descartabilidade dos produtos a elas vinculados nos torna produtores de resíduos em potencial. O Macgyver de Neném Maravilha pode ser muito em breve o moderno herói que não usa capa, aquele que, de fato, tem o poder transformador de fazer deste mundo menos insuportável, se é que isso ainda é uma possibilidade.
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Porém, a Série 2, como escrevemos na primeira experiência de assisti-la, fala muito de abandono. É nesse sentido que “De Costas para o Rio” de Felipe Aufiero, aplica outros elementos narrativos, como o realismo fantástico. Como o texto curatorial menciona, estamos diante de um alinhamento entre ficcionalidade e documental, com destaque para a apresentação de Caruso no Teatro Amazonas. A obra vincula território e sentimento tal qual “Eu Te Amo, Bressan“, uma ode ao cinema carregada de emoção feita pelo jovem Gabriel Borges.
Usando a arquitetura de Curitiba como cenário, o cineasta se opõe ao filme de Aufiero ao tomar para si formas colonizadoras de se fazer audiovisual no Brasil. Em tom crítico, mas tão fantasioso quanto nos grandes momentos de “De Costas para o Rio”, vamos da nouvelle vague a Matrix sem perder a sensação de que é uma obra tipicamente nacional. Apropriar-se da melhor maneira possível, tornando a própria apropriação um elemento da narrativa.
Eis que a sessão se encerra com a inventividade de Marco Antonio Pereira, um desbravador. “4 Bilhões de Infinitos” é mais um curta-metragem que, sem dúvida, ocupará espaços levando o que de melhor o país vem produzindo. Assim como Gabriel ressignifica a fantasia com suas imagens, Marco tem domínio e maestria nesse ofício. Hoje é um dos nossos grandes destaques e privilegiado é o evento que conta com uma de suas obras, tal qual Nara Normande e Adirley Queirós.
Originalmente, assistimos ao filme no 48º Festival de Gramado e destacamos como a construção de expectativa conduz uma narrativa que trata da chegada implacável da maturidade. Parecem possibilidades antagônicas, visto que temos um embate entre o ansiado por um tema que depende de representações, mesmo que não verbais. O diretor precisa compor os espaços e os personagens de forma a alcançar esses objetivos sem perder a unidade fílmica. A parte final dá ainda mais força para “4 Bilhões de Infinitos”, desde o uso da luz do fogo até uma ligeira quebra de quarta parede. Dentre as formas de provocar na contemporaneidade do nosso cinema, a forma de Marco Antonio Pereira segue sendo uma das mais envolventes.
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Até que chegamos na Série 3 da Mostra Foco que traz três curtas-metragens que bagunçam ainda mais a nossa mente. Começando com o vencedor da edição, “Abjetas 288”, pensando como trabalho de conclusão da graduação de cinema da dupla de diretoras radicadas em Aracaju, Júlia da Costa e Renata Mourão. Em nossa entrevista falamos sobre as trocas de Júlia com o Coletivo Chorumex, do Ceará, a partir do contato com Clara Chroma, extensível a outros Coletivos e Coletivas da região, principalmente na comunidade audiovisual sergipana. Aqui há uma junção estética muito forte, que inclui o sempre mencionado cyberpunk com a leitura do mesmo mundo distópico de “Rodson Ou (Onde o Sol Não Tem Dó)“, exibido na Mostra Olhos Livres.
“Abjetas 288” também explora a territorialidade e traz as consequências das dinâmicas das selvas de pedras atuais, perdidas entre lixões a céu aberto e monstruosos condomínios. De um lado, a especulação imobiliária, do outro, o caos. Quando falamos não ser surpresa a vitória por ser esse um trabalho de duas estudantes (elas se formaram na véspera da nossa conversa, já em março de 2021), isso revela alguns fatores importantes da maneira como o Brasil trata sua cultura. A primeira é que a formação não consegue esperar e os realizadores aqui precisam colocar a cara no sol o quanto antes. E, assim como na terra de Rodson, esse não tem dó. Renata revelou que demorou o dobro do tempo sugerido do curso porque precisava trabalhar na área o quanto antes. A ocupação de espaços sempre é urgente, porque nunca sabemos como será o dia de amanhã.
O filme, então, coloca em foco o cinema do Sergipe, que quase não recebe incentivo governamental. Uma trincheira ainda mais dura, porque precisa superar as barreiras econômicas e ideológicas de uma nação que ainda vê, majoritariamente, a arte como algo menor na sociedade – quando não a enxerga como vilã. A chegada do curta-metragem à Tiradentes já merecia destaque, mas sua participação de forma competitiva, com o mesmo trabalho de releitura de espaços, corpos e objetos que compõem algumas das grandes obras dos últimos anos, parece ter tornado inevitável o troféu a “Abjetas 288”.
Contudo, essa sessão possui outros dois curtas igualmente espetaculares. O primeiro é “Preces Precipitadas de um Lugar Sagrado que Não Existe Mais“. Do Ceará, une Mike Dutra, parte do Coletivo Descabelo, com Rafael Luan. Mais um registro de como as associações dentro da produção vêm gerando filmes com discursos e imagens cada vez mais potentes. Roberta Mathias, no texto original, chama a atenção pela vinculação filosófica, sendo este filme também um ótimo exemplo de confluência de saberes, de ciências. Nosso modus operandi está cada vez mais especializado, com motivações e fontes identificadas, destrinchadas. Nunca tivemos tantas experiências para além do cinema como no audiovisual do país nos últimos anos, reflexo de uma formação cada vez mais plural, tanto em relação aos conteúdos quanto aos representantes e seus discursos.
Isso nos leva à obra que encerra a Mostra Foco, “Novo Mundo“. Unindo novamente um artista visual, Gilvan Barreto, com uma experiente figura do cinema brasileiro, a roteirista, montadora e cineasta Natara Ney, aqui temos um encontro de gerações, sem choques. Entrevistamos a dupla na edição mineira do evento e a diretora faz questão de pedir a benção a quem veio antes e agradecer aos jovens que a acompanham na lista de selecionados de Tiradentes. Seu curta-metragem é uma leitura moderna e sensorial da colonização implacável, forjada ao custo de manter milhões de escravizados. Chagas abertas, nunca resolvidas, sendo qualquer tentativa de reparação histórica hegemonicamente condenada. No contexto onde está inserida, permite uma partilha de saberes e vivências que Natara e Gilvan generosamente nos forneceu ao longo de encontros e debates em que estavam.
Nesse país que mal saiu de um regime genocida anistiado e já entra em outro com o pano na mão, “Novo Mundo” pode parecer uma performance experimental para o espectador tradicional. Culpa de uma terra que, por não conhecer sua História, não desenvolve um olhar crítico. Por não desenvolver um olhar crítico, não se reconhece em espaços como a formidável produção audiovisual. Por não se reconhecer, não valoriza ou ignora o trabalho de uma comunidade que atinge representantes de todos os lugares, raças e gêneros, que passam suas mensagens das mais diversas formas em semanas como as inesquecíveis 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes e 9ª Mostra Tiradentes | SP.
Para aqueles que recebem essas falas, mesmo na dura trajetória do isolamento social, a arte soa como salvação. Para os outros, citados acima, a realidade lá de forma os engole no sofá de casa, reflexo de um país em ruínas, sem que muitos não consigam entender o porquê.
Lista de críticas publicadas:
Texto Série 1, por Roberta Mathias
Texto Série 2, por Roberta Mathias e Jorge Cruz
Texto Série 3, por Roberta Mathias
Lista de entrevistas:
Júlia da Costa e Renata Mourão, diretoras de “Abjetas 288”
Natara Ney e Gilvan Barreto, diretores de “Novo Mundo”
Clique aqui e acesse a apostila especial da Mostra Tiradentes | SP.
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