Céu Aberto

Céu Aberto 2022 Documentário Crítica Filme Apostila de Cinema Poster

Sinopse: Uma jovem mulher se aproxima da idade adulta vivendo no interior, na campanha gaúcha, em pleno século 21. Ao longo de cinco anos de gravações entre a diretora e a personagem, que também se auto-registra, acompanhamos esse tempo que passa e a maneira como ele altera sonhos, desejos e motivações. Em algum lugar entre espelho e janela, a câmera se torna companheira deste processo de amadurecimento e de transformação.
Direção: Elisa Pessoa
Título Original: Céu Aberto (2022)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 34min
País: Brasil

Céu Aberto 2022 Documentário Crítica Filme Apostila de Cinema Imagem

As Certezas que Deixamos no Caminho

Uma das produção brasileiras presente na mostra Outros Olhares do 11º Olhar de Cinema de Curitiba, o documentário “Céu Aberto” é a única obra dentre as assistidas pela Apostila de Cinema em que a pandemia que perdura há mais de dois anos possui papel importante. A diretora Elisa Pessoa acompanha os passos de Andriele entre o fim da adolescência e o começo da fase adulta e, dentre outras questões que superam o período histórico, nos faz reaproximar de um debate que repercutirá por muito tempo.

Quando saímos do momento de exceção que vivemos – e o qual, graças ao avanço da ciência que permitiu desenvolvimento de vacina e programa de imunização em massa em tempo recorde – nossas atenções se voltarão às gerações impactadas pela covid-19 em seu desenvolvimento. Não apenas em relação ao quadro clínico (afinal, estamos lidando com uma doença nova, que ataca vários órgãos e de consequências ainda desconhecidas – além da falta de imunizante para menores de cinco anos). A sociabilidade afetada terá um peso muito maior entre aqueles que estavam em busca de seu lugar no mundo.

Se nos concentrarmos na faixa de idade da protagonista de “Céu Aberto” podemos perceber uma tendência: amadurecimento precoce e o abandono de certas premissas que entendia inegociáveis antes do mundo parar. Seguindo a trajetória de Andriele ao longo de cinco anos, a realizadora nos traz uma adolescente com planos mais pragmáticos (e ousados), para chegar a uma jovem que olha para o futuro com a incerteza que lhe é, de fato, característico. Muitos podem achar que ela “aprendeu uma lição”, mas é mais interessante – e lúdico – entender que ela cedeu à pressão das convenções.

As primeiras cenas do longa-metragem mostra uma menina tocando o gado da fazenda da família com virulência. Estamos em maio de 2016, vivendo as primeiras movimentações políticas após o golpe parlamentar contra a Presidenta Dilma Roussef. A leitura sobre a simbologia do gaúcho dos pampas faz com que a obra se junte a quase todas as selecionadas para a Outros Olhares de 2021, que funda suas narrativas na identidade como mola propulsora. Boa parte dos filmes que fizeram parte da nossa cobertura tem esse viés observatório e a até um pouco laboratorial.

Porém, Andriele é, enquanto adolescente, pragmática – como já dissemos. Ela quer um futuro em que reúne seus conhecimentos e interesses, além de pensar no legado que lhe será permitido. Por isso, une os pontos e diz que estudará Zootecnia e depois Veterinária, como uma forma de fazer o que gosta e otimizar as atividades de seus pais. Porém, quando a montagem corta para maio de 2020, quatro anos se passaram como se quatro vidas tivessem se sucedido.

Andriele é, enquanto jovem, alguém que se fixou no centro da cidade de Dom Pedrito para ser Jovem Aprendiz. Fará alguns bicos de babá e diz preferir o mercado de trabalho do que o “sonho” de estudar. Sonho é uma palavra por mim colocada (e por mim “aspeada”). Afinal, vivemos em um país que adjetiva o ensino superior, taxa como um desafio, porque não vê e fornece méritos para algumas conquistas. No Brasil, estudar não é escolha – é a união de necessidade e oportunidade. É, para a maioria, algum grau de privilégio.

Só que em “Céu Aberto” há uma consequência das mais fundamentais para a geração da protagonista no contexto da pandemia. Ela sente falta das relações sociais, como um todo – e sabe que essa troca energética é importante para que avancemos em várias questões que o isolamento deixa em suspensão. A diretora, à distância, precisa lidar com a produção de imagens pela própria personagem. Dentro de sua casa, no auge das medidas de distanciamento, se torna mais reflexiva. Passa a entender algumas escolhas da mãe, por exemplo, e incentivá-la a mudar no que for preciso. O golpe de 2016 parece esquecido por muitos, mas na realidade de pessoas como Andriele ele reverbera. O que era um fim de sonho político na origem, virou a destruição de realidades.

Um exemplo é a forma como o auxílio emergencial se deu no país. Ela ainda o chama de Bolsa Família de seiscentos reais, um vínculo histórico-afetivo com uma política social que foi atacada desde sua proposição. E seguiu encontrando resistência de Jair Bolsonaro e seus representantes, que somente após muita pressão política iniciou o pagamento da ajuda governamental para uma população sem norte e sem chão no início da pandemia. O que essa mistura de interrupção de vida social, traumas políticos e econômicos e início da vida adulta marcado pela ausência de perspectiva fará a uma geração saberemos mais adiante.

Em “Céu Aberto“, a Zootecnia foi trocada pelos tutorias de maquiagem na internet, em um último suspiro de adolescência sonhadora. A realidade bate fundo para Andriele, sem tempo de continuar refletindo e pensar no futuro porque já terá sob sua responsabilidade uma outra geração – que não poderá repetir essa escalada de medo de que o futuro não é somente incerto, é improvável.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *