Sinopse: “Com Vandalismo” repetiam gritando parte dos manifestantes que ocuparam as ruas de Fortaleza. Mas na multidão das manifestações, que explodiram no Brasil em junho de 2013, outros grupos empregaram métodos mais diretos. Tachados de “vândalos”, foram criminalizados por parte da grande mídia, antes mesmo de serem ouvidos. Este documentário vai à “linha de frente” para registrar os confrontos e entrevistar os manifestantes para mostrar as motivações dos atos de desobediência civil.
Direção: Coletivo Nigéria
Título Original: Com Vandalismo (2013)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 12min
País: Brasil
Sobre a Nação que Protege Vidraças
Já com uma perspectiva histórica, assistir “Com Vandalismo“, documentário realizado pela Nigéria Filmes e disponível na plataforma Bombozila, parceira da Apostila de Cinema, é voltar a 2013. Enquanto cidadão, as manifestações de junho começaram um pouco antes para um advogado de escritório do Centro do Rio de Janeiro oito anos atrás.
Isso porque o Movimento Passe Livre já se articulava e organizava protestos no final da tarde meses antes. Sem qualquer cobertura midiática, ainda dentro do que chamaríamos no futuro de “bolha” nas redes sociais, meu contato foi de estranhamento. Quando, reiteradas vezes, um incômodo trânsito na Avenida Presidente Vargas se justificava com o gás lacrimogênio entrando pelas janelas do ônibus, na eterna promessa de climatização pelo Prefeito da época (e de agora). A resposta era dura porque a visibilidade era nula.
O longa-metragem traz um recorte territorial e temporal que nos coloca no auge das manifestações contra o aumento das passagens (vamos usar o jargão da mídia hegemônica). Radicados em Fortaleza, os jovens realizadores perceberam que algo fora do comum acontecia em mobilizações que ganhavam capilaridade junto à sociedade. Iniciam a captação das imagens no dia 19 de junho, quando a Seleção Brasileira foi ao Castelão, estádio local, jogar contra o México pela Copa das Confederações – e seguem por mais três protestos em um intervalo de oito dias.
Contextualizar 2013 e suas complexidades não é tarefa fácil. Diria impossível em um texto de consumo rápido quanto uma crítica cinematográfica. Os aspectos que permanecem mais latentes em “Com Vandalismo” são duas gêneses que ganharam força no Brasil, com efeitos positivos e catastróficos ao mesmo tempo. O primeiro está na própria linguagem do filme. A equipe da Nigéria se insere, nesse caso, em uma formação de mídia alternativa, aquela que nos deixava conectados em transmissões ao vivo pelo Faceboook e Twitter enquanto os meios de comunicação tradicionais estavam mais perdidos do que os poderes institucionalizados. Por sinal, aos poucos foi se afastando a ideia de contraposição entre veículos – sendo, de fato, alternativa a palavra correta.
Antes de seguir, vale mencionar a série de curtas-metragens “Desde Junho“, de Júlia Mariano, em que a realizadora, de forma precisa, olha para além de 2013 a partir dessa ótica. Ela também está disponível na Bombozila e será revisitada por nós que, por enquanto, escrevemos sobre a versão dela exibida na Mostra Convida do Festival de Taguatinga de 2020.
É possível considerar uma junção entre positividade e catástrofe porque a mídia alternativa veio para ficar. Em um consumo de tudo enquanto indivíduos baseado em nossas tendências, passamos a ter a nossa rede particular de informação. Os problemas começam quando essa rede passa esporadicamente a mentir e a usar a credibilidade de outros para chancelar tais mentiras. Em um ciclo de fé no mais próximo, passamos a ser também transmissores de inverdades – e independente do seu espectro político é bem provável que você já tenha enviado um link com informação falsa ou imprecisa para amigos e familiares.
Assista uma entrevista da Apostila de Cinema com Roger Pires, do Coletivo Nigéria Filmes:
A outra gênese é o da polarização da opinião pública. Essa, sem dúvida, catastrófica. Ela começa em um período fundamental como junho de 2013 e “Com Vandalismo” é bem assertivo ao mostrar como as dinâmicas da sociedade se alteraram muito rapidamente naqueles dias. Mais do que não encontrar uma pauta única, não foi possível sequer apontar um inimigo em comum. Por sinal, apenas a Presidente Dilma Rousseff apresentou algo institucionalmente concreto, chamado de “5 medidas em resposta às manifestações“, sabotada por todos os partidos políticos à época. A catástrofe se deu quando manifestantes, na intenção de dar uma peso aos protestos que talvez levassem a mudanças, renegaram o “vandalismo” como ato válido.
Ao invalidar (e até mesmo ajudar na caça, como o filme bem mostra), eles protegeram algumas vidraças de banco a mais e arrefeceram movimentos. Quem dera se esse fosse o grande problema! As releituras da época começam a consolidar a ideia de que os “vândalos” foram apenas os primeiros a serem calados. Percebeu-se que os movimentos sociais institucionalizados cumpriam a cota de resistência controlada, aquelas que as elites até tentam criminalizar, mas surpreendem menos do que a espontaneidade do que surgia ali. Não há como não lembrar que, no mesmo Rio de Janeiro em que estava à época, surgiu a ideia de transformar a Praça da Apoteose no Sambódromo em um “manifestódromo” – uma ideia que automaticamente aumenta nosso ranço por algumas vidraças.
A fluidez da dinâmica está lá. A cooptação do hino nacional atravessada, o abandono da espontaneidade já mencionada… Os que ficaram, entretanto, elegeram sua pauta: a corrupção. Com isso, um movimento de direita aparece para suprir essa demanda. Com ele uma operação policial tão complexa quanto tendenciosa diz que vai lavar tudo e a catástrofe se consolida. Enquanto registro de uma época, “Com Vandalismo” consegue atingir muitos pontos interessantes. O manifestante encurralado pelos próprios colegas estava acostumado a ser agredido pela polícia em jogos de futebol, por exemplo. Torcidas organizadas sempre estiveram na lista de sparing da PM – algumas delas antifascistas e parte importante da linha de frente da resistência desenvolvida em 2020.
Outras questões surgem de forma acessória, até pela dificuldade em se dimensionar os fatos no calor do momento. O ativismo digital e as motivações que levaram a mídia hegemônica a ser pulverizada daquele ambiente precisam de uma projeção do espectador ciente do ocorrido; De longe, essa mídia desenvolveu rapidamente um protocolo: “uma pequena minoria de vândalos” – definição usada até hoje. Em uma entrevista aqui para a Apostila de Cinema, o cineasta Roger Pires, parte do Coletivo Nigéria, mencionou rapidamente sobre a duração deste documentário. De fato, ele tem uma dupla personalidade, já que troca em sua segunda metade as informações e os relatos a uma representação mais imersiva – bem parecida com a cobertura ao vivo. Acho que isso torna o longa-metragem mais completo e é justamente a ausência de distanciamento que tornou essa misto de intenções tão interessante. Porém, pode levar os analistas de manual a colocar na mesa essa “unidade estilística”.
Os realizadores seguiram com seus projetos. Júlia Mariano também foi entrevistada por nós sobre “Sementes: Mulheres Pretas no Poder” (2020). A Nigéria Filmes segue sua linha de retratar aspectos sociais em suas obras, como o documentário “Swingueira” (2020), fato gerador da conversa que deixamos acima. A sociedade se redistribuiu e outras produções retrataram isso – inclusive “Espero tua (Re)Volta“, que gerou um texto de Roberta Mathias há alguns dias. Aquelas pessoas, com camisa no rosto ou máscara de Guy Fawkes, mesmo unindo desobediência com consciência, foram esmagados pelas instituições. Alguns anos depois, o irmão do representante da oligarquia era opção de voto antifascista, para comprovar como essa terra plana capota.
Vai saber quando as imagens de “Com Vandalismo” serão superadas nessa nação que, ao não se decidir sobre o real significa de vandalismo (bem definido na narração final como “enigmático fenômeno social“), segue seu rumo no inabalável dever de proteger vidraça de banco.
Clique aqui e assista ao filme na plataforma Bombozila.
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