Doutor Gama

Doutor Gama Crítica Filme Pôster

Confira a estreia de “Doutor Gama” com crítica e entrevista com produção e elenco! 

Entrevista | Doutor Gama | Leia Também

Sinopse: “Doutor Gama” é baseado na biografia de Luiz Gama, um dos personagens mais importantes da história brasileira, homem negro que utilizou as leis e os tribunais para libertar mais de 500 escravos. Nascido de ventre livre, Gama foi vendido como escravo aos 10 anos de idade para pagar dívidas de jogo de seu pai. Mesmo como escravo, se alfabetizou, estudou e conquistou sua própria liberdade, se tornando um dos mais respeitados advogados de sua época. um abolicionista e republicano que inspirou um país inteiro.
Direção: Jeferson De
Título Original: Doutor Gama (2021)
Gênero: Drama | Biografia
Duração: 1h 30min
País: Brasil

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Todos os Vivos

Há alguns meses, em artigo conjunto meu e de Roberta Mathias para a edição 26 da Revista Rosebud, traçamos um paralelo entre “Chico Rei” (1985), produção ficcional dirigida por Walter Lima Jr. e “Chico Rei Entre Nós” (2019), documentário da cineasta Joyce Prado que assistimos – e realizamos com ela uma entrevista – durante a Mostra SP de 2020. Mais do que as mudanças estéticas e tecnológicas de um Cinema Brasileiro que vivia o canto do cisne da Embrafilme e sua comparação com um pulsante e pungente audiovisual contemporâneo, os aspectos envolvendo representatividade e, sobretudo, representação, se tornaram a base fundamental do diálogo entre aquelas obras, trazidas em nosso texto.

Todo o processo envolvendo o lançamento de “Doutor Gama” comprova que há um processo em curso de resgates de apagamentos sob o viés da esperança. De um Cinema Negro Brasileiro que não foi inaugurado no manifesto Dogma Feijoada, mas que encontra nele um ponto de convergência. Não apenas porque encontramos em filmes como o de Jeferson De, que apresenta a trajetória do abolicionista, jurista e escritor Luiz Gama a partir de momentos-chaves de sua vida, uma abordagem que escapa da exploração da dor. Do sofrimento, que quase sempre alerta, mas dificilmente edifica aquele que não o sente. Dor e sofrimento que estão presentes no passado exposto – e também no presente, aquele que o longa-metragem toca diretamente.

De forma generosa, elenco e equipe de produção dividiram em uma entrevista coletiva suas leituras sobre a obra e as perspectivas do que imaginam e gostariam que o espectador brasileiro absorvesse. No meio de tantas falas concisas e potentes, não resta tanto a se dizer sobre a obra. Um filme que vem embalado em discursos carregados de consciência. Não apenas sobre a importância da ocupação de um espaço – e sim do “como” e do “porque” dessas ocupações.

Na contribuição enquanto jurista, Luiz Gama – que recebeu uma simbólica inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil apenas em 2015 – jogou luz não apenas à causa abolicionista, mas à busca por dignidade do povo negro liberto. Como o cineasta mesmo registrou, sem sorrisos. Sem motivo para celebrações esfuziantes sob o aspecto mais fundamental de uma proposta embrionária de igualdade. O terço final de “Doutor Gama”, que se transforma em um filme de tribunal, consegue comungar a retórica necessária para que as falas de um advogado sejam sentidas aos reflexos da trajetória humanista de seu protagonista.

Esta abordagem se encontra com o prólogo, quando César Mello aparece na primeira visão que temos do personagem, na fase adulta. Ele simula uma quebra ou, de fato, quebra a quarta parede? A interpretação é parte do jogo, de uma atuação profissional que deixa – por vezes – de lado convicções em nome do direito universal de ser defendido. Todavia, por vezes elas se alinham, no que há de mais apaixonante no ofício. Dali em diante, Jefferson De nos fará voltar no tempo, sem o pastiche de uma jornada de herói tradicional – mas sendo possível encontrá-la sob determinados aspectos – para apresentar como o senso de justiça foi forjado em Gama, como suas convicções se encontram com as causas que ele tomou também para si.

A chegada na produção da Globo Filmes aproxima o filme de uma estética que lembra as telenovelas de época. Aquelas que “A Negação do Brasil” (2000) de Joel Zito Araújo apresentou, de forma panorâmica, os profundos problemas representativos. E que, há alguns anos, passou por um revisionismo crítico positivo. Até por isso, a força comercial desta obra do cineasta parece ser ainda maior do que a de “M8: Quando a Morte Socorre a Vida” (2019). Ele consegue aplicar a sua linguagem a uma embalagem atraente para o espectador-médio e ancora o universalismo do texto no sempre curioso debate sobre o que é “legal” e o que “deveria ser”.

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Dali em diante, “Doutor Gama” encontra a atemporalidade. Quem negava o abolicionismo há menos de duzentos anos, questiona a necessidade de respeito de hoje. O escravagista de ontem é o homofóbico de hoje e o racista de sempre. Condicionar respeito às mudanças de leis e achar que é possível destilar ódio e intolerância durante o processo não deixa de ser uma visão positivista – tão absorvida no Brasil que até hoje ostentamos “Ordem e Progresso” em nossa bandeira – e quase nunca nos questionamos os motivos.

O longa-metragem se distancia do popular da Retomada – que ainda encontra bons exemplares, mais próximos da irreverência como “Pacarrete” (2019). Mesmo assim, é popular sob uma nova forma, de um gênero bem aceito. É sobre dor e sofrimento, mas sobre o que se constrói além disso. Assim como “Todos os Mortos” (2020), mas de uma busca por representação fluida para o público, infelizmente, menos conectado com o audiovisual brasileiro contemporâneo. Como o mesmo César Mello disse em entrevista, sobre o Brasil que queremos ver.

Não soa como uma apropriação de linguagem, parece mais com a proposta de uma nova – imune à cooptações. Não é apenas uma contrapartida ancestral, não é somente a necessária reparação histórica, é também uma atualização, enquanto audiovisual e abordagem histórica. Como se Luiz Gama fosse apresentado sob o olhar coletivo de uma equipe – algo que a cultura popular sempre fez muito bem em festejos populares, desde um simples folguedo até as magnânimas escolas de samba – todos com um poder gigante de comunicabilidade.

“Doutor Gama” nos lembra que o Cinema está mais perto destes propósitos do que seus anos de evoluções involutivas, que o dividiu em caixinhas limitadoras, fez acreditar. Quase como fonte primária, de tanto silenciamento e apagamento que fez de Luiz Gama um personagem quase desconhecido de parte da população. Um jurista que, assim como falamos em nosso texto sobre “Justiça“, fez parte de um processo (se não o inaugurou de forma espontânea no país), de uma Justiça que olha para a frente, onde estão as pessoas – não apenas para baixo, onde estão as leis.

Diante dos olhos da sociedade, uma nova conquista gera a demanda por outras. Do abolicionismo veio o garantismo – e, sob esse aspecto, historiografia a dialética do protagonista está eternizada. Menos jornada do herói e mais estudo de caso. Tortura, violência, abuso, humilhação – e também muito mais. Um trio de atores que mostram que o Cinema Preto Brasileiro está vivo em César, Angelo Fernandes e Pedro Guilherme. Com a benção de Zezé Motta, que rompeu barreiras para que Mariana Nunes fosse mais uma a brilhar. Além de Isabél Zuaa, dando vida à Luiza Mahin. Ela, Claudinha e tantos outros que gostaríamos de testemunhar o protagonismo daqui para frente.

Enquanto nas ruas o poder instituído condena vidraça de banco partida e silencia sobre incêndio à maior Cinemateca do país, a Cultura quer nos sugar para um mundo paralelo antifascista. De um passado que existiu e sempre foi negado. Os revisionistas de ontem são os propagadores de fake news de hoje. Da escravidão ao cárcere, a sociedade segue necessitando de provocações – espetaculares e não espetacularizantes como é “Doutor Gama“. Parecemos perdidos em relação ao hoje porque nunca nos contaram a verdade sobre o ontem.

Veja o Trailer:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

3 Comments

    1. Olá, Lilian! Boa tarde! De acordo com a distribuidora do filme, na primeira semana “Doutor Gama” ficará em cartaz no Estação Gávea (18:30), Estação NET Rio (18:25) e Estação Botafogo (21:00).

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