Sinopse: Um inesperado filme de viagem no Extremo Oriente da Mongólia e no Japão atuais. A história das viagens do linguista e diplomata finlandês G. J. Ramstedt ao velho mundo das crenças e tradições do final do século XIX, um mundo hoje substituído por ideologias e pela economia de mercado. Ele testemunhou os eventos dos últimos cem anos, e agora nos lembra de porque e como estamos aqui hoje. “Memórias do Oriente” entrelaça com perfeição o passado e o presente em uma jornada visualmente deslumbrante de exploração, aventura, amor e morte, conspirações e a queda das nações.
Direção: Niklas Kullström e Marti Kaartinen
Título Original: G.J. Ramstedtin Maailma (2018)
Duração: 1h 26min
Gênero: Documentário
País: Finlândia
Projetando o Passando
“Memórias do Oriente” resgata dois livros de relatos do linguista e diplomata finlandês G. J. Ramstedt (1873-1950), que excursionou pelo Oriente na transição entre os séculos XIX e XX para, mais do que produzir grandes imagens pelas mãos dos cineastas Niklas Kullström e Marti Kaartinen, nos fazer refletir sobre as distâncias culturais entre nações próximas territorialmente – e como um processo de homogeneização das cidades trouxe danos irreparáveis para o patrimônio histórico do planeta, mesmo em locais que prezam pelo tradicionalismo.
Isto porque, em uma solução muito interessante do filme, algumas das narrações das memórias do pesquisador são acompanhadas de imagens da face mais moderna das sociedades japonesa, mongol, chinesa e coreana. É como se aqueles espaços transitados por Ramstedt, por não mais existirem, precisassem ser re-idealizados. Uma experiência muito curiosa que o longa-metragem permite, um exercício muito rico para quem gosta de trabalhar a imagem e, principalmente, dentro do conjunto de uma produção audiovisual. Ao chegar no Oriente, o finlandês encontrou boa parte da população formada por nômades. Descreve aquele território como “antes da chegada do progresso”. Hoje nos perguntamos: que progresso é esse? Não estavam certas aquelas pessoas que diziam, filosoficamente, que “a terra é que possui o homem” e não o contrário?
Sob a desculpa do registro histórico, o que “Memórias do Oriente” faz é retomar a discussão sobre a Era Antropocêntrica, que muito entendem que inauguramos a partir do momento em que aceitamos que a Humanidade assumiu para si todas as grandes mudanças na Terra ao explorar dela o máximo. Este é o mote de outro documentário da Mostra Ecofalante desse ano (e do nosso texto correspondente a ele), o francês “Breakpoint: Uma Outra História de Progresso” (2018). Ali o recorte a partir da Revolução Industrial tem um foco eurocêntrico e o filme de Kullström e Kaartinen é um contrapondo mais lúdico, ligeiramente poético por nos fazer deparar com um mundo que não existe mais.
G.J. Ramstedt retorna algumas vezes e amplia seus conhecimentos sobre os idiomas, principalmente o coreano. Tenta entender essa suposta integração neurolinguística com o povo finlandês, apostando que nossas origens são muito mais complexas do que conseguimos mapear até então. Com isso ele pode se tornar testemunha da Guerra dos Boxers, que na chegada do século XX antecipava pelo lado chinês a forma imperialista de ocupação européia dos espaços. Anos depois, lida também com a importante articulação da independência da Mongólia em relação à própria China. A montagem do filme faz alguns bumerangues de representações. Transita entre passeios por áreas desérticas ou território bem preservados dos calmucos com entrevistas e manifestações de rappers dos grandes centros da Mongólia. Neste ponto deixa claro que homogeneização de formas de discursos talvez não gerem prejuízos em relação ao seu conteúdo. A maneira moderna dos jovens expressarem é um espelhamento do Ocidente, mas sem perder a tom crítico.
Com lindas imagens do Deserto de Gobi e suas estátuas gigantescas, mas sempre retornando para as cidades, “Memórias do Oriente” nos provoca a todo instante a relação com os territórios – principalmente na suposta divisão entre aqueles que devem ser fruídos e os que merecem ser contemplados. Ao botar na mesa todas essas questões, a parte final do filme nos transporta para o Japão ultra moderno e tecnológico. Com manifestações culturais que o Oriente exportou, o país conseguiu traçar um caminho inverso e o documentário usa os mangás como exemplo. Para a juventude japonesa, não há ficção e sim um mapa comportamental. Estudos fundamentais para a busca de conceitos filosóficos a partir da arte, algo que uma geração inconscientemente já o pratica.
Até que a relação territorial chega aos apartamentos que simulam cápsulas de sobrevivência, de tão pequenos e funcionais que são. Passeia pelas sensações buscadas a partir de jogos eletrônicos, um placebo emocional de uma vida cada vez mais confinada e sufocante. Em contrapartida, mostra na Coréia do Sul e na China as regiões das cidades chamadas hutongs. Pode parecer um nome estranho, mas o Cinema já nos mostrou muitas delas. São aqueles becos muito parecidos com a residência original da família que protagoniza “Parasita” (2019). Uma referência cultural a partir de um espaço e que muitos moradores não sabem que se tratava de antigas áreas de poços quando ali a ruralidade era a característica.
O diplomata finlandês foi um dos pioneiros na quebra de barreiras linguísticas, antes mesmo das relações no Oriente serem influenciadas pela União Soviética. Stalin, por exemplo, temia uma união entre Mongólia e Japão, a ponto de promover um esmagamento cultural, destruindo monastérios e matando monges. Nações que já dividiram muito e, por forças das circunstâncias, passaram por rupturas. Hoje é possível realizar intercâmbios culturais com muito mais facilidade. Nesse festival de cinema mesmo, já conhecemos a realidade de mais de dez países e ouvimos relatos em incontáveis idiomas. “Memórias do Oriente” é mais um caso de que, quanto mais somos apresentados a outros representações, maior é a nossa curiosidade por conhecê-las.
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