Sinopse: Enquanto executam atividades extremamente repetitivas, os funcionários de um supermercado encontram espaço para expressar suas dúvidas, afetos, medos e sonhos improváveis. Humor, drama, mistério, romance e física quântica convivem com caixas de leite, cortes de carne, códigos de barra e câmeras de segurança. No espaço confinado da loja, os funcionários não permitem que a rotina aprisione suas imanências e sua imaginação.
Direção: Tali Yankelevich
Título Original: Meu Querido Supermercado (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 20min
País: Brasil
Minha Vida É Lá Fora
“Meu Supermercado Favorito” abre em grande estilo a mostra competitiva de longas-metragens nacionais da 25ª edição do Festival É Tudo Verdade. Nos coloca dentro de um dos templos do consumo moderno, sob a ótica de quem tem sua força de trabalha explorada em prol do bem estar de todos nós. Uma vez, conheci uma pessoa que – no meio de uma discussão com sua chefe que tentava adicionar mais elementos de preocupação e cobrança desnecessária acerca de seu emprego – respondeu: “minha vida é lá fora”. Pois bem, a diretora Tali Yankelevich impossibilita ao espectador o acesso a essa vida aqui de fora. Usando o som não diegético para provocar sensações pré-definidas de gênero, a obra tenta induzir na rotina mecanizada daquelas pessoas a possibilidade de romance, suspense ou alguma ação.
A ideia original do filme surge quando a diretora ouve a conversa de dois funcionários de um supermercado. Porém, ao tratar indiretamente da relação de trabalho, o documentário atinge a nós por vias que extrapolam o lado sentimental. Nos primeiros momentos, ela insere aquelas pessoas sem individualizações, sem que possamos ver seus rostos. Uma massa indecifrável de trabalhadores marcando seus pontos biométricos em uma trilha que quer nos convencer de que estamos entrando em um mundo de fantasia. E, na verdade, é. Para nós. Tali apresenta um prólogo em que o estabelecimento está sendo montado e ali podemos notar algumas características que transformam um espaço que existe para adquirirmos produtos necessários em um momento de lazer. Muito parecido com o que mencionamos sobre as farmácias em nosso texto sobre “Beleza Tóxica” (2019).
A fantasia do consumo de uns é o drama existencial de outros e “Meu Querido Supermercado” seguirá essa linha de representações. A preparação do frigorífico, o corte dos frios, a organização do estoque. O pão precisa estar pronto e quentinho quando o primeiro cliente, que acabou de acordar, entrar. O setor de serviços é aquele que mais emprega pessoas e, ironicamente, um dos quais identificamos menos empatia por parte de quem se relaciona com o trabalhador. Por outro lado, há quem faça questão de dizer o orgulho que sente por servir, por laborar em uma função que beneficie centenas de pessoas diariamente, como um dos caixas entrevistados pela cineasta.
As imagens construídas por ela auxiliam nessa ideia de que estamos diante de várias linhas de produção setorizadas. Não há muita diferença entre a logística de um supermercado e de uma fábrica, a diferença são os consumidores. Inúteis para o longa-metragem porque não faz sentido lidarmos com elementos transitórios se queremos alcançar um produto final perene. O que está ali pode ter acontecido em qualquer estabelecimento similar ao redor do mundo, sem que consigamos precisar a data. Pelas breves informações que temos das produções selecionadas do É Tudo Verdade, “Meu Querido Supermercado” será um dos poucos competidores da mostra nacional a ter um elemento universalista intrínseco.
Por óbvio, há muitas conexões com a população brasileira, afinal, grande parte dos trabalhadores entrevistados faz parte da camada mais popular da sociedade. Chama a atenção uma senhora que só consegue trabalhar cantando, vai do gospel ao samba, sem perceber o quanto suas escolhas refletem a pluralidade da nação em que vive. Todavia, ao focar no sentimento de ansiedade e na possibilidade de desenvolver ataques de pânico, por exemplo, voltamos a cuidar de temas que tornam o longa-metragem um produto a percorrer todo o mundo.
Quem, contudo, se presta a um olhar mais técnico, encontrará um dos documentários mais inventivos que pudemos assistir esse ano. Não apenas por desenvolver muito bem o objeto o qual escolhe se focar – mas também como faz isso. A diretora é daquelas que vê arte em todas as manifestações e consegue fazer um cinema documental moderno como poucos. Na confusão entre ficção e realidade que transportamos para nossa própria rotina, foi um prazer a sensação de angústia causada pela criação de um thriller na sala de segurança ou a possibilidade de bailarmos uma valsa em um dos corredores.
Tali Yankelevich, com a Elo Company como distribuidora, colherá muitos frutos com a ideia nascida em um dia de compras. Para ela, a banalidade rotineira foi quebrada naquele momento. Em determinado momento, um dos funcionários afeito a filosofias, nos faz pensar se há vida após a morte. Não termos certeza. Mas que há vida após o trabalho, há. Tem de haver e mesmo em um processo de reconceituação do emprego (nota: não estamos falando deste uso clássico da palavra e sim de um neologismo emprestado), meu final idealizado de “Meu Querido Supermercado” tem a mesma felicidade suprema que o fim de um exaustivo expediente.
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