Sinopse: Em agosto de 2016, Dilma Rousseff, a primeira presidente mulher do Brasil, foi afastada do cargo pelo Senado. Ela foi alvo de ataques após uma série de escândalos e alegações de corrupção. Este drama de tribunal documenta o julgamento de cariz político da perspectiva da equipe de defesa de Rousseff.
Direção: Maria Augusta Ramos
Título Original: O Processo (2018)
Gênero: Documentário
Duração: 2h 21min
País: Brasil
À Espera da Derrota
Após a Vitrine Filmes consolidar uma parceria com a plataforma de streaming Netflix que levou outros quatro documentários da cineasta Maria Augusta Ramos para o catálogo da empresa, chegou esta semana “O Processo“, sua obra mais notória. Não sei se a mais ousada, porque lembramos em nossa crítica sobre “Justiça” (2004) o que representou na época a captação de imagens de julgamentos reais. Aqui a diretora se coloca dentro do circo político, nas derradeiras semanas do governo da Presidenta Dilma Roussef. Aqui estamos em uma época em que a instantaneidade midiática já promovia parlamentares, advogados e juízes bem mais espetacularizados do que os de outros tempos.
Uma obra que traz, pelo olhar da urgência, parte das mirabolantes criações de uma intervenção antidemocrática golpista no país – a qual até hoje pagamos o preço. Assim como ocorreu na época do mensalão com a CPI dos Correios – onde se iniciava a transmissão direta por canais estatais – atualmente a CPI da Covid tem obtido recordes de engajamento e audiência nas redes sociais, YouTube e redes de notícias. Para aqueles em crise de abstinência pelas férias parlamentares, a forma como a película se desenrola deve torná-la atraente para os caçadores de produções no menu da Netflix.
Não podemos prosseguir sem trazer um desagravo ao filme. É comum análises atravessadas darem conta das escolhas de representação do longa-metragem, algo ampliado pela forma como Petra Costa assumiu essa responsabilidade em “Democracia em Vertigem” (2019), lançado um ano depois. Todavia, boa parte destes analistas ignoram que vivem em uma bolha onde a ruptura institucional imotivada e injusta é quase uma unanimidade. Quando que, no mundo real, o que ocorreu foi exatamente o contrário. A obra dá voz a um lado que, mesmo no poder, foi inteiramente criminalizado em prol de um dito bem maior, que era “varrer a corrupção” do país. Entender que há uma suavização de discursos ou representações heroicas de certas figuras é ignorar que a tática, na verdade, foi exposta por quem tem, de fato, o força de influência da opinião pública nas mãos.
Tanto é verdade que, passados cinco anos do golpe antidemocrático, a mídia hegemônica se nega a ouvir o Partido dos Trabalhadores enquanto oposição. Mesmo sendo ele, ao lado do PSL, o partido com maior representatividade parlamentar na Câmara dos Deputados (em estatística atual são 53 parlamentares, ou mais de 10% do total). Insistem em uma terceira via quando a segunda não é posta na mesa. “O Processo” não se enfraquece ao promover tal atratividade, ele se fortalece. Começando por expor a piada que se tornou a sessão de abertura de processo, que virou peça de propaganda do futuro Presidente Jair Bolsonaro que, no meio de políticos defendendo honras da família tradicional brasileira, encontrou espaço para homenagear um torturador.
De forma bem diferente, “Irresistível” (2020), comédia norte-americana, chegou ao catálogo do Telecine na mesma semana em que os assinantes do serviço de streaming mais popular do mundo poderão ter acesso ao filme de Ramos. O que há de similaridade entre eles é a política como terra do faz-de-conta, de movimentos pensados, discursos direcionados. E, no caso do impeachment de 2016, processos tidos como imparciais e justos que todos já sabem de forma antecipada o resultado. Uma liturgia que o PT prosseguiu em nome da estabilidade democrática. Em sessão dupla com “Futuro Junho” (2015) – também de Maria Augusta Ramos – já era possível antecipar o que uma crise econômica, em parte, fabricada, nos levaria.
A abertura de “O Processo” traz um elemento interessante. Na Esplanada dos Ministérios dividida por um muro, para manter distância entre os manifestantes, os de camisa verde e amarela possuem vozes predominantemente masculinas. Já os de vermelho, denunciando que a vontade do povo seria rasgada pelo Congresso Nacional, são mais plurais e mesmo assim há certa predominância feminina. A primeira mulher eleita para comandar o Governo Federal estava em vias de ser retirada de sua cadeira, mas a imprensa optava por um simbolismo misógino, colando nela a imagem de autoritária e descontrolada.
Percepção que Roussef didatiza em uma entrevista para jornalistas franceses mais adiante. Nas vezes em que ela responde de forma objetiva sobre as acusações, apresenta um conhecimento técnico e político de dar inveja a parlamentar de trinta anos de mandato que sobe a rampa do Planalto. Nos vendemos para a antipolítica no primeiro balão de ensaio negacionista e aqueles dias entre abril e agosto de 2016 são fundamentais para melhor interpretá-lo. A montagem prioriza a cronologia, com informações na tela quase como um diário. Talvez seja a obra menos contemplativa da cineasta – um elemento que “Alvorada” (2021), lançado este ano, supre ao retratar o isolamento dos últimos dias de Dilma no cargo.
Há no meio de todas aquelas representações, alguns fatos que não foram mostrados de forma tão relevante no período. Entre eles, a demora providencial do STF em afastar Eduardo Cunha, acusado de corrupção, poucos dias após ele concluir sua missão de abrir o processo de impeachment – o mesmo que Arthur Lira, com mais de uma centena de pedidos, se nega a fazer hoje. Os mais atentos perceberão nas áreas periféricas das cenas rostos que se tornariam a cara do Brasil atual, como Onyz Lorenzoni e Magno Malta, peças-chaves na eleição de 2018 – além de Davi Alcolumbre, que presidiaria o Senado Federal mais a frente.
Nas falas, o documentário soa por vezes como profético. Assim como Lindbergh Farias atestou, Janaína Paschoal surge não somente como advogada e professora de Direito Penal da USP. Ela já estava em campanha para Deputada Federal e se tornou uma das mais votadas da história de São Paulo. E, sim, a condução coercitiva desnecessária do marido de Gleisi Hoffman foi promovida por um dos orientados dela – e isso é apenas uma ilação. Tratava-se de outro balão de ensaio que a intervenção jurídica que a Operação Lava-Jato promoveu utilizaria como expediente. A Senadora, então, fala das dificuldades de penetração do PT nas camadas populares jovens. O establishment político visto como antagonista de forma ampla.
Já Gilberto Carvalho reflete sobre o futuro, o que envolvia a possibilidade de retirar Lula do tabuleiro para que ele não concorresse no pleito seguinte. No meio de tantas previsões acertadas, um pouco da tal autocrítica que adoram cobrar – até mesmo os jornalistas que sabem que contribuíram para o estabelecimento do fascismo neoliberal em curso. Janaína aceita participar de um filme, mesmo sabendo que soaria patético parte de seus discursos, porque era isso que a direita queria. Ela apostou no teatro dos absurdos, na verborragia, no nacionalismo brejeiro e na indignação materializada no PT para tomar o poder para si.
Nem o próprio Senador Cássio Cunha Lima acreditou na espontaneidade da voz das ruas – e riu com Dilma Roussef em sua retórica tucana, envelhecida e esmagada pelo bolsonarismo. A centro-direita se despersonalizou, sobrou a ela votar com o governo atual, mendigar terceiras vias para a imprensa e ser taxada de comunista da mesma maneira. Ainda colocou camisa verde e amarela, cantou o hino, abraçou amante de torturador. No que antes era a centro-esquerda, angariou-se nomes que perderam capital político por demonstrarem incapacidade de ler a sociedade naquele momento, como Cristóvão Buarque ou transformar as mudanças do país em uma cruzada pessoal, como Marina Silva antes e Ciro Gomes agora.
“O Processo” assume a proposta de apresentar o julgamento de exceção e kafkaniano de Dilma. Não há purismo edificante na parcela lida pelo filme como injustiçada, apenas a serenidade de quem sabe que a derrota é iminente. Enquanto encontrarmos detratores, a caravana passa. Sempre será hora de expor a nojeira daqueles dias, no que registra tão bem o épico de Maria Augusta Ramos, que traz um olhar ainda mais inspirado do que o restante de sua filmografia. Há vezes em que crítica sobre forma no audiovisual brasileiro contemporâneo soa como jabuticaba, terceira via, mamadeira erótica. Relativiza e dá munição para aqueles que nos matam.
Veja o Trailer: