Pieces of a Woman

Pieces of a Woman Crítica Filme Netflix Pôster

Sinopse: Uma mulher em luto embarca numa viagem emocional após a perda do seu bebê. Diante dessa perda, ela terá que lidar com as consequências que seu luto tem nas relações com o marido e a mãe, lutando para que seu mundo não desabe por completo.
Direção: Kornél Mundruczó
Título Original: Pieces of a Woman (2020)
Gênero: Drama
Duração: 2h 6min
País: Canadá | Hungria | EUA

Pieces of a Woman Crítica Filme Netflix Imagem

Contrair-se

Novamente apostando em um drama familiar, sobre o desmoronamento de uma relação, a Netflix destacou no início de 2021 em seu catálogo “Pieces of a Woman“, longa-metragem estrelado por Vanessa Kirby e que pode garantir a primeira indicação ao Oscar da atriz, famosa no papel de Princesa Margaret, na série “The Crown“. Ela concorre tanto ao SAG Awards quanto ao Globo de Ouro, sendo essas as únicas chances de prêmios nos dois eventos.

Isso deve fazer com que o filme mostra bem menos fôlego do que a aposta do ano passado, “História de um Casamento” (2019), que teve seis indicações aos prêmios da Academia, dando a Laura Dern – esnobada em seus inesquecíveis trabalhos juntos a David Lynch – o de atriz coadjuvante. Todavia, na análise fria, a produção dirigida por Kornél Mundruczó é superior àquela conduzida por Noah Baumbach.

Isso porque passamos longe de reciclagens de narrativas aqui. O diretor húngaro explora bem o texto da dramaturga Kata Wéber, sua conterrânea e também responsável pelo roteiro de “Deus Branco” (2014). Eles também são um casal e a obra é uma potente reconstituição de suas experiências. Ela, em um momento de afastamento do marido ao residir em Berlim, escreve o roteiro. Se propondo a trazer a humanização do parto em conflito com uma desumanização de tudo o que o cerca, a obra alcança a dose de impacto que a longa cena de destaque – em que o nascimento da bebê de Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf) não resiste – mas sabe o que fazer depois disso. Mesmo que não por todo o tempo, encontrando as mesmas repetições de soluções preguiçosas que tornou “Minari” bem menos apaixonante do que a forte campanha por trás do filme quer transparecer.

Não dá para não reservar algumas linhas de qualquer análise de “Pieces of a Woman” sem tratar da sequência do parto, que nos envolve por quase meia hora. Feita quase toda em um corte só, assumindo o plano-sequência apenas a partir de certo ponto – estamos longe do brilhantismo de Liu Ze em “Apenas Mortais” (2020), que faz dessa escolha uma potente ferramenta por todo seu filme. A exploração da câmera, que precisa trazer as reações dos três personagens (o casal e Anita, parteira vivida por Iliza Shlesinger) é um trabalho notável. Porém, não seria nada sem a entrega de Kirby, em uma interpretação angustiante, sofrida, que traz a mensagem da desglamourização da gravidez e seu momento-chave sem um diálogo, uma palavra. A atriz, que nunca passou pela experiência de um parto, supriu a ausência dessa projeção de si com laboratórios junto a outras grávidas e documentários sobre o assunto. Por sinal, o filme pode ser acompanhado pela trilogia “O Renascimento do Parto“, produções brasileiras que também estão disponíveis na Netflix e trata da violência obstetrícia.

Já o seu companheiro em cena registra a impotência comum aos homens, sentimento fundamental para que a liberdade da mulher tomar as decisões seja compreendida. Porém, antes de chegarmos a esse ponto, o longa-metragem tem um curioso prólogo, que se passa no chá de revelação da filha dos protagonistas. A história ali se insere mais para demonstrar o domínio de Elizabeth (Ellen Burstyn), sogra de Sean, que sente prazer em recompensar financeiramente a filha e o genro. Uma luta de egos, um conflito entre duas pessoas que apenas se aturam. Porém, pensar na recepção em que se conta aos amigos o sexo de uma criança diz muito sobre a espetacularização da vida privada. O que antes chamávamos de “chá de bebê” (feito para comemorar uma fase que se inicia na família), virou “chá de fralda” (feito para angariar produtos de higiene e auxiliar no orçamento sempre impactado com a chegada de um membro) e migrou para o “chá de revelação”, um pastiche de celebração que bate recordes de breguice, com alguns casais reservando um estádio de futebol para transmitir ao vivo a valiosa informação, o fim do mistério entre azul e rosa.

Como dito anteriormente, “Pieces of a Woman” é feito para abrir questão sobre a autonomia da mulher enquanto dona do próprio corpo – e as consequências de suas decisões que mantém essa liberdade. É inegável que os minutos que antecedem (e os dias que sucedem) o parto é um momento em que a gestante está extremamente vulnerável e a escolha sobre certos caminhos tomados precisa ser mitigada. Ao trazer um situação-limite, o filme confronta essa impossibilidade da plena autonomia quando as coisas começam a dar errado. É aqui que a história pode deixar a desejar, principalmente na forma atabalhoada como trata no ato final a apuração sobre a responsabilidade médica. Se a primeira sequência no tribunal, em que Kirby novamente se destaca em seu depoimento, tudo caminhava para uma abordagem propositiva sobre a crise instaurada; o retorno de Martha em seu apelo é totalmente fora de propósito.

A vilania de Elizabeth, a mãe que de tão preocupada com o bem-estar da filha irá por tudo a perder, é outro resgate preguiçoso da narrativa. Um cheque para Sean se afastar da companheira é traçar paralelos folhetinescos a um longa-metragem que ganhava pontos pela modernização de forma e estilo. Já a metaforização é menos incômoda. O personagem de LaBeouf trabalha na construção de uma ponte e Mundruczó, já que o filme se passa em alguns poucos dias espalhado ao longo de meses, insiste em retomar a ideia de que há algo sendo construído. Pensar nessa trajetória melancólica, de um luto estranho, dá peso à bonita trilha de Howard Shore (vencedor de três Oscars, por seu trabalho na trilogia “O Senhor dos Anéis”) quando ela surge. Apesar do didatismo representativo, não perde em equilíbrio, já que outros elementos usam as intenções e as sensações para se firmar.

O cineasta tem momentos inspirados, prima por detalhes que fazem de “Pieces of a Woman” uma obra humanista. Mantém o distanciamento quando do risco de uma violência sexual contra Martha – e dá peso a uma violência física em um close forte do rosto sendo golpeado com a bola de ioga, parte da romantização da gravidez que se torna até incompreensível depois do acontecimento. Kirby vai se transformando em uma mulher que revê aquele caminho, que administra a morte, mas reflete sobre seus erros – os de decisão e aqueles que a sociedade a ela impõe. Aos poucos a casa de Sean e Martha vai sendo abandonada, a crueldade dos procedimentos vão fazendo a jornada da protagonista ainda mais solitária e triste.

Porém, o que se amplifica em “Pieces of a Woman” é que Martha parece ter consciência de que qualquer decisão tomada enquanto mulher livre pode ser revista. Não há que se cobrar coerência, não há hipocrisia entre discursos e ações, na lógica própria de um indivíduo. Pena que Kornél Mundruczó faz tanto para erguer uma heroína de pouca fala, que internaliza todas as suas dores porque não encontra quem seja capaz de senti-las, para encerrar em um epílogo malickiano forçado.

Veja o Trailer:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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