Programa 02 de Curtas | Olhar de Cinema 2020 | Mostra Competitiva

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Programa 02 de Curtas da Mostra Competitiva do 9º Olhar de Cinema

Desconstruções da Inocência ou O Balé da Modernidade

Algo-Rhythm Curta Crítica Olhar de Cinema Imagem
Algo-Rhythm (Manu Luksch, Áustria | Senegal | Reino Unido)

O Programa 02 de Curtas da Mostra Competitiva do 9º Olhar de Cinema tem na música um importante fio condutor. Porém, o que mais se destaca não é o som e sim a movimentação daqueles corpos. Vítimas dos grandes males da sociedade atual, eles transitam com forte carga de orgulho e discursos que os afastam da inocência – boa parte estereotipada pela idade, origem ou classe social.

O primeiro curta-metragem, “Algo-Rhythm“, é dirigido pela austríaca Manu Luksch, uma cineasta com uma vida dedicada ao impacto das novas tecnologias nos indivíduos e nas relações sociais. Ao contrário de documentários pretensamente informativos ou desnecessariamente alarmantes (como exemplo do primeiro podemos indicar o texto de “Influência“, parte da cobertura do Festival É Tudo Verdade e do segundo “O Dilema das Redes“, disponível na Netflix), o filme segue o caminho da música. Uma opereta que tem início com a conversa de uma candidata e um gênio do algoritmo. Dali em diante ouviremos o canto de usuários e entenderemos, de forma lúdica, o poder de retenção que as grandes corporações do setor tem para fazer todos nós não abandonarmos o telefone e as redes sociais. Aliás, se você chegou nesse texto – publicado fora delas – você já é uma exceção.

Um caminho de aumento de intolerância e discurso de ódio em plataformas que imaginávamos inocentemente que nos levaria a um mundo com mais liberdade, educação e acesso à informação. Luksch aposta no uso político das redes, que vai na linha daquele primeiro documentário em longa-metragem, principalmente no que diz respeito à democracia controlada. Todavia, não deixa de tratar da premissa de que, nesse ambiente, nós somos o produto – como o segundo filme se utiliza. Porém, faz isso em formato de um poderoso musical, que traz a riqueza de ritmos do Senegal, de forma bem mais purista no gênero do que outra criação genial assistida em 2020, “Em Cima do Muro” – onde a cineasta Hilda Lopes Pontes aposta no híbrido.

Noite de Seresta Curta Crítica Filme Olhar de Cinema Imagem
Noite de Seresta (Sávio Fernandes e Muniz Filho, Brasil)

Não poderíamos deixar de falar do segundo curta-metragem, o brasileiro “Noite de Seresta“. Clicando no nome do filme você tem acesso a um texto especial sobre ele, com direito a entrevista em áudio e vídeo. O que Katia Blander oferece na produção dirigido por Sávio Fernandes e Muniz Filho é uma tentativa de cura pela música. Uma busca de um sonho que nunca acabou e uma entrega a si, em oposição a uma realidade que muitos entendem como agente dificultador ou impossibilitante. A cantora transita por espaços múltiplos sem se moldar a eles, o que é raro em um mundo cada vez mais complexo e exigente. Ser Katia Blander para ela é ser única.

A mesma forma pouco afeta a sensacionalismo e sentimentalismo é identificada em “Panteras“, produção espanhola dirigida por Erika Sanchez. A história de duas jovens que sofreram e ainda sofrem muito por sua identificação com o feminino. A corporalidade é explorada pela diretora, que mostra as personagens não apenas em seus momentos mais íntimos, mas também inseridas em um contexto onde a definição de gênero é uma exigência. Dentro de banheiros públicos ou em reuniões escolares, Joana e Nina precisam – ainda na adolescência – partir de uma ressignificação em processos paralelos de auto aceitação, adaptação e resistência. Esta última na fase mais cruel da vida, com constantes bullyings sofridos.

Panteras Curta Crítica Olhar de Cinema Imagem
Panteras (Erika Sanchez, Espanha)

Ainda bem que elas têm uma a outra e, no conforto do lar, vão do rap ao pop para verbalizar seus desejos e passar suas mensagens. Além de, literalmente, tacarem fogo nas atitudes fascistas com as quais ela convivem da porta para fora.

Tela de Shanzhai” encerra o Programa 02 de Curtas da Mostra Competitiva ao trazer um jovem especializado em reprodução de telas. Shanzhai é uma palavra chinesa que, ao mesmo tempo que significa desconstrução, também é usada para tratar de produtos genéricos ou falsificados. Um prato cheio para Walter Benjamin e seus estudos sobre a era da reprodutibilidade técnica. O pensador, onde quer que esteja, deve estar dando gostosas gargalhadas com os caminhos do audiovisual em 2020. O curta, dirigido por Paul Heintz, não foi pensando desta maneira, claro. Mas é curioso o tema que ele traz em um momento onde a forma pela qual consumimos cinema é pelo computador ou pela TV.

Telas de Shanzhai Curta Crítica Olhar de Cinema Imagem
Telas de Shanzhai ((Paul Heintz, França)

O próprio conceito de arte se ressignficou e admitiu suas concessões no mundo da pandemia. Com isso, múltiplas sessões virtuais de “Tela de Shanzhai” acontecem ao longo do dia, afastando aquela construção coletiva de outrora. Sai o auditório, entra a sala do Zoom. O filme nos faz pensar também na facilidade de comunicação que nos transformou em donos de discursos. Porém, dois graves problemas são cada vez mais identificados. O primeiro é que as possibilidades de fala e reverberação, nos tornou raros ouvintes. Pouco sabemos sobre o outro porque estamos em uma crescente de projetar nossas opiniões e conhecimentos sobre tudo. O segundo é que essas projeções são cada vez mais rasas – baseadas em superficialidades adquiridas para aquele novo discurso descartável. Ou seja, geralmente reproduções de discursos.

Nessas reproduções, o Programa 02 de curtas chega ao fim com mais um videokê, só que ultramoderno, conectando um microfone no aparelho celular. Muita música tocou nessas obras, dançamos, cantamos e vimos um grupo poderoso de personagens transitarem para se e nos desconstruírem.


Ficha Técnica da Sessão Programa 02 de Curtas da Mostra Competitiva

Algo-Rhythm Curta Crítica Olhar de Cinema Pôster Programa 02 de CurtasAlgo-Rhythm (Manu Luksch, 14′ – Áustria | Senegal | Reino Unido)
Sinopse: Uma disputa no verbo, na cadência, um palanque político virtual onde vence (será que vence?) quem melhor se sair nas batalhas de rimas do hip hop. Mas não só isso: uma disputa dentro do erro da imagem, uma batalha dentro do bug do sistema. Nessas falhas, revemos o poder e o controle das pessoas pelas redes sociais, o discurso de “seja você mesmo” monetizando vidas, glorificando a ideia do sujeito autodeterminado do Ocidente. As imagens são estranhas, mas o mundo é mais estranho que elas. Os algoritmos nos fascinam em seus ritmos.

Noite de Seresta Curta Crítica Filme Olhar de Cinema PôsterNoite de Seresta (Sávio Fernandes, Muniz Filho, 19′ – Brasil)
Sinopse: Quem canta seus males espanta. Esse é o lema de Kátia, uma mulher que dedica sua vida a cantar acompanhada por midis de karaokê. Quando canta, seu corpo e sua alma se expandem, não ficam circunscritos a um palco, percorrem o ambiente, dançam, sorriem, interagem e contagiam seu público, as mazelas da vida se apagam. Nesse documentário observamos um desses momentos da cantora, conhecendo um pouco de sua vida e sua forma de estar no mundo. Viramos também o seu público, que é agraciado com sua energia, que canta junto, que espia.

Panteras Curta Crítica Olhar de Cinema Pôster Programa 02 de CurtasPanteras (Erika Sanchez, 22′ – Espanha)
Sinopse: Joana e Nina tem uma relação que extrapola as convenções de afeto e vivem uma intensa fase de descobertas e reflexões sobre seus desejos, sobre mudanças de seus corpos. Há uma forma misteriosa de filmar a interação das personagens, que fica na fronteira entre uma amizade extremamente íntima e um namoro. O filme acompanha Joana em sua subjetividade e incertezas, que observa mulheres e se observa, diante da pulsante curiosidade sobre seu gênero, sua sexualidade e do julgamento alheio.

Telas de Shanzhai Curta Crítica Olhar de Cinema Pôster Programa 02 de CurtasTela de Shanzhai (Paul Heintz, 23′ – França)
Sinopse: De que maneira é possível atualizar o debate sobre aquilo que Walter Benjamin já há muito tempo chamava de “a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”? Esse filme não surge como resposta à essa questão (ou a qualquer outra questão), mas citar o texto de Benjamin é inevitável para, talvez, abrir algumas portas nesse ambiente melancólico que é aqui meticulosamente construído em uma narrativa que nos força a investigar as possibilidades de fruição estéticas diante de realidades cada vez mais virtuais.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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