Leia a crítica de “Raia 4”, produção brasileira que estreia nesta quinta-feira.
Sinopse: Amanda é uma nadadora pré-adolescente. Quieta e reservada, encontra, embaixo d’água – lugar onde os segredos não podem ser ouvidos – um refúgio. O conflito com os pais, as pressões do esporte e da fase da vida, tudo parece se acumular no entorno de Amanda, que acaba se aproximando de Priscila, uma colega de equipe.
Direção: Emiliano Cunha
Título Original: Raia 4 (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 32min
País: Brasil
O Seu Melhor Tempo
A natação é um esporte particular, tanto em suas convenções e representações, quanto em relação a quem a pratica. A raia de número 4, por exemplo, é vista como um local nobre nas competições finais, já que ela é ocupada por quem detém o melhor tempo nas etapas classificatórias. “Raia 4” também é o nome do primeiro longa-metragem de Emiliano Cunha. Vencedor do prêmio da crítica do Festival de Gramado de 2019, chega em maio tanto no circuito comercial brasileiro (dia 6), quanto nas principais plataformas de streaming para locação (dia 20). Além deste troféu, recebeu o de fotografia (para Edu Rabin) e de o melhor longa gaúcho daquele ano (e em 2020 o vencedor foi o ótimo “Portuñol“, que nos rendeu uma grande entrevista com Thais Fernandes).
O cineasta vem da Comunicação, onde é Mestre e professor de audiovisual. Seu filme faz parte de um dos núcleos de produção brasileiras mais interessantes (e, sem dúvida, o mais intrigante) da atualidade, o gaúcho. Aqui na Apostila de Cinema já falamos sobre os desdobramentos dos realizadores do Ceará, conectados de certa forma como em um processo colaborativo. O Rio Grande do Sul colhe os frutos de outro tipo de desenvolvimento na área. Começa antes mesmo da Retomada, na Casa de Cinema de Porto Alegre que nos, deu, entre outros, Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo (que emocionou os dois residentes do site com “Aos Olhos de Ernesto“).
Só que, mais adiante, as políticas de incentivos à produção local (incluindo a projeção da mostra regional dentro de Gramado) se transformou em novas leituras. Assim como “Disforia” (2019) foi uma das grandes surpresas de 2020 (por sinal, disponível no Amazon Prime Video), “Raia 4” desponta como uma possível obra a figurar nos melhores de 2021. Assim como Lucas Cassales, Emiliano Cunha consegue aplicar à sua narrativa um ritmo e uma forma de representação capazes de trazer para seu centro o espectador de fora do circuito tradicional (e, infelizmente, pouco massivo) do cinema nacional. Com a protagonista Amanda (Brídia Moni) ele usa o esporte e a adolescência como base de um argumento poderoso, que se materializa em uma história envolvente.
A jovem, filha de médicos, está prestes a completar treze anos e compete em um tradicional clube de Porto Alegre. Ela precisa manter o foco nesta atividade de alto rendimento, enquanto outras transformações surgem em sua vida. A natação, como dissemos, tem suas particularidades porque é um dos exercício mais solitários que existe. Você mal consegue enxergar o seu competidor, não ouve nenhum som externo, sequer recebe uma informação. Você pula na piscina tal qual um salto de fé em você mesmo. Nem mesmo a possibilidade de reflexão a partir do momento de total vazio consegue ser aproveitado, já que a atleta precisa a cada nova virada se superar.
Não bastasse essa pressão sobre a imprevisibilidade instantânea, sobre o que te espera do outro lado da raia, a adolescência tem seus próprios desafios. Amanda é instada a se impor mais limites do que a ansiedade natural desta fase e os passos incertos já os coloca. Na alimentação e no comportamento, a protagonista precisará aplicar o problemático paradigma da figura exemplar do competidor. Ética, disciplina e determinação. O diretor, então, nos propõe um filme que mantém sua personagem em compasso de espera, na também solitária missão de auto entendimento.
A não aceitação do próprio corpo – também comum da idade, principalmente nas mulheres – ganha outros contornos por conta da natação. A estrutura das atletas já antecipam uma lógica que as privará de muitas coisas. Por sinal, as escolhas tanto de Moni quanto de Kethelen Guadagnini, que interpreta Priscila, vieram de castings específicos para termos, na liderança de elenco, nadadoras de verdade – uma contribuição não apenas para a interpretação, mas para manter a fidelidade visual.
A dedicação ao esporte passa por aceitar uma vida controlada, talvez incompleta – e que nem sempre o resultado compensará. Afinal, a ideia de que competimos com nós mesmos é pura falácia meritocrática. Por mais que o cineasta construa a realidade de uma jovem privilegiada, de família com boas condições financeiras, aparentando permanecer em uma redoma de vidro blindado, os dramas particulares de um adolescente costumam se importar pouco com essa leitura comparativa sobre a própria realidade. O que poderia ser um grande arco metafórico entre essa relação com o esporte, a fluidez da água como elemento contrastante e muito dos artifícios utilizados com frequência, ganha novos contornos quando Cunha decide tornar a própria narrativa na grande âncora da obra.
“Raia 4” faz isso dialogando com a obra já citada de Cassales (e, por que não?, com “A Mesma Parte de um Homem“, da paranaense Ana Johann). Estamos diante de uma ótica introspectiva, incômoda sem sabermos apontar os motivos. Com uma estética fria, a história de Amanda segue rumos aterrorizantes quando uma grande transformação enquanto mulher supera qualquer outro compromisso. Um exercício parecido com o curta-metragem experimental “Águas Vermelhas“, assistido no ano passado. Só que a sociedade nunca quer saber se você está vivendo o momento errado na hora certa. Vendemos para os jovens que o futuro é agora, alardeamos a necessidade de serem fortes sem fornecer nenhuma base que os mantenha saudáveis.
Ao explorar as imagens da piscina (um dos destaques do incrível trabalho de Rabin), Emiliano Cunha antecipa um clímax que faz refletir sobre até onde a competição pode nos levar. Não apenas como atletas. No caso de Amanda, como mulher. Mas também enquanto adolescente, forjada para ser uma bem-sucedida fortaleza. O sucesso é questão de tempo para sua família. Seu rosto pálido esconde o brilho de mais uma estrela radiante a ponto de decolar. Tudo mentira. “Raia 4” é uma perturbadora lembrança de como é viver em apneia. Só que não sei se algum dia chegaremos a respirar tranquilos novamente.
Veja o Trailer: