Sangue Azul

Sangue Azul Filme Brasileiro Cinema Nacional Crítica Lírio Ferreira Pôster

Sinopse: O circo Netuno monta lona em uma ilha paradisíaca. Zolah (Daniel de Oliveira), o homem-bala, já conhece o local. Lá ele foi criado, junto com a irmã Raquel (Caroline Abras), até o dia em que a mãe, Sônia (Sandra Corveloni), o mandou para longe temendo um incesto entre as duas crianças. Já adulto, ele reecontra a família depois de vinte anos e é chegado o momento de resolver as questões do passado que ainda o atormentam.
Direção: Lírio Ferreira
Título Original: Sangue Azul (2014)
Gênero: Drama | Mistério
Duração: 1h 59min
País: Brasil

Sangue Azul Filme Brasileiro Cinema Nacional Crítica Lírio Ferreira Imagem

Sem Estigma de Crueldade

Com quatro capítulos e um epílogo, “Sangue Azul” traz um Lírio Ferreira um pouco mais entregue ao virtuosismo estético, à performance por trás de uma narrativa sobre busca de identidade a partir do reencontro com territórios e origem familiar. Filmado em Fernando de Noronha, o longa-metragem venceu três prêmios no Festival do Rio de 2014 (filme, direção e ator coadjuvante, este para Rômulo Braga). Em mares internacionais, foi apresentado no Festival de Berlim, onde concorreu ao Teddy Awards, troféu concedido a produções com temática LGBT+. Já a fotografia esplendorosa de Mauro Pinheiro Jr. ganhou o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2016, após passagem da obra pelo circuito comercial.

Aqui o diretor dialoga mais com seu conterrâneo Cláudio Assis do que geralmente o faz em filmes como “Baile Perfumado” e “Árido Movie“. Talvez envolvido nas possibilidades de criar imagens dentro de um pequeno paraíso na Terra, ele explora as representações de forma mais imersiva, sobretudo, no aspecto poético. Sendo assim, até que Zolah (Daniel Oliveira) incorpore o Homem-Bomba, que dá título ao primeiro capítulo, o espectador se estabelece na ilha a partir da longa sequência de montagem da lona do circo Netuno. Em preto e branco, é mais parecido na forma do que no conteúdo de outro prólogo do cinema recifense contemporâneo que utiliza o mesmo expediente, “Febre do Rato”. Enquanto Assis nos revela aspectos da paisagem da capital pernambucana, aqui o arquipélago surge em paralelo, infiltrado nas movimentações daqueles corpos e objetos que criam um novo mundo – mágico e temporário – naquele espaço.

Paulo Cesar Peréio, que na obra ficcional anterior de Lírio foi um defunto presente na cabeça do protagonista Jonas (Guilherme Weber), aqui faz as vezes de mestre de cerimônias. Kaleb tem o rosto, a voz e a presença de uma entidade do cinema nacional e é a partir de seus movimentos que iniciamos um mergulho. Em entrevista à Apostila de Cinema, o cineasta fez questão de frisar a importância e o peso da água em suas construções narrativas. Aqui ele a eleva ao status de vital, se relaciona ao sangue, resgatando o viés de nobreza da expressão. Porém, por trás desse mesmo virtuosismo poético já  mencionado, há um passado traumático de Zolah, que coloca a ilha com um território tradicional de assombração.

Quando sai da monocromacia, “Sangue Azul” exagera nas tonalidades. O som constante das ondas ampliam essa viagem onírica, em um caminho que começa a se avizinhar um pesadelo a partir de lembranças despertadas. Até que um personagem diz, ao lembrar que o Cinema é filho do Circo, que a natureza e a gênese do audiovisual é o sonho. Nisso, o capítulo dois (Insônia) ainda traz outras referências pictóricas e cinematográficas. Uma magia que só é possível em um espetáculo pequeno, que revela por trás do amadorismo algo hipnótico. De Woody Allen (e seus exercícios de devaneios habituais, como em “O Escorpião de Jade” de 2001) ao uso da imaginação sobre o que não há dentro do plano, sempre lembrando por Ruy Guerra em falas como a do documentário “Um Filme de Cinema“.

O realizador luso-brasileiro, homenageado no Festival É Tudo Verdade deste ano e prestes a completar 90 anos, não foi pinçado por acaso. Ele emerge na onda azul de Lírio como um personagem, em uma praia com uma origem lascívia quase tão potente quando a clássica cena de “Os Cafajestes” (1962) – revisitada por nós quando do texto de “O Homem que Matou John Wayne“. É quando “Sangue Azul” se permite de vez o desenvolvimento de uma mística ligada a sensualidade, ao trazer tabus para o centro da obra. Em corpos estilizados, Ferreira traz um clímax no meio de seu filme, quebrando a lógica narrativa (por ele ensaiada nas palavras em arquivo do próprio biografado dentro do documentário “Cartola – Música Para os Olhos” em 2017). Isto porque o capítulo três tem o sugestivo título de “Infância”.

Daniel de Oliveira, como sempre, está muito bem como Zolah. Construindo um protagonista que vai de encontro com suas memórias até sentir dor física pelo passado, nos dá ferramentas para uma segunda metade ainda mais imersiva, como fatalmente ocorre nas narrativas do diretor. Consolidamos em nossa mente aquela personalidade e com ele sofremos as consequências das descobertas. Tanto que o capítulo quatro tem o título certo para a experiência da parte final da sessão, “Angústia“, também nome de romance de Graciliano Ramos que traz um pouco dessa frustração introspectiva, ligado a uma reflexão sobre as origens e a ideia de que vivemos uma falácia. Mais uma vez um diálogo que nos coloca no contexto histórico do Estado Novo, que prendeu o escritor em 3 de março de 1936, horas depois dele ter revisado pela última vez o livro. Parece que, de certa forma, todos os caminhos da filmografia de Lírio nos leva a este período de ruptura democrática e de um rompimento de conceito de Brasil.

Ao trazer e se permitir ser um pouco mais alegórico, “Sangue Azul” usa duas camadas para contar uma história muito real para um sonho e muito fantástica para a realidade. Assim como a dupla filtragem de cor, parece sempre ter um verniz que transcende o que nossos olhos conseguem identificar. Isso para lembrar que tudo o que já passou por esta Terra, chega um dia, deixa de ser fato e vira lenda. Se prender a uma centelha verossímil só nos faz mais ansiosos, tira parte de nosso prazer. Quem te condenou agora, pode não ter forças para influenciar aqueles que te julgarão no futuro. Por apenas quatro graus, Fernando de Noronha fica ao sul da Linha do Equador. E a gente sabe que, por aqui, não deveria existir pecado.

Veja o Trailer:

 

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *