Sessão Cine-Teatro | 16ª Cine OP
Muito Além do Tempo
Dentro da mostra de curtas-metragens contemporâneos da 16ª Cine OP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, a Sessão Cine-Teatro quer nos levar em uma viagem através dos tempos, do início da imagem em movimento materializada para as várias ideias de futuro, das novas configurações territoriais de um mundo pós-pandêmico à distopia de realizadores que parecem não enxergar saída para nossa falência enquanto sociedade.
“Desvio” abre a sessão com uma construção de memórias a partir de arquivos descartados, na definição da cineasta Flora Nakazone. Uma perseguição de sentido que dialoga com o lindo longa-metragem “Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem” de Natara Ney, assistido no último Festival de Brasília. Aqui o dinamismo imposto na obra de menor duração e a experimentação estética a partir desta volumosa colagem nos traz outras percepções, amplia o leque de questões envolvidas – sem deixar de lado o lado intimista.
Há algo interessante que surge nos primeiros momentos do filme. A ideia de que a perseguição por origens e sentidos das imagens não as tornam completas – sempre haverá algo que elas não mostrarão (como lembra Ruy Guerra em suas dalas nos documentário “Um Filme de Cinema” e “O Homem que Matou John Wayne“). A realizadora, então, torna essa reflexão mais poética e nos instiga a projetar nossos olhares e vivências às memórias produzidas por outros.
Desamarrada de interpretações alheias, Flora consegue se debruçar no que há de representação da sociedade no meio daqueles rolos de 1974 encontrados. Ela vai além provocação por trás do conceito de um país sem memórias e quer nos levar ao que seria um conceito de Brasil diante da relação destas lembranças com seu território. Assim como a obra, não tenho respostas concretas sobre a existência e mutação deste conceito – talvez porque no fundo ainda não conseguimos nos fazer representar pelas imagens produzidas em outros tempos.
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Realizado no contexto de isolamento social “Igual/Diferente/Ambas/Nenhuma” nos leva a outros questionamentos, mais urgentes e que impactam tanto na obra anterior quanto na seguinte. Entendendo que vivemos uma era transacional e transicional, as cineastas Adriana Barbosa e Fernanda Pessoa realizam uma troca de correspondências audiovisuais de São Paulo à Califórnia, enquanto o mundo assiste com temor as providências genocidas tomadas pelos Presidentes Jair Bolsonaro e Donaldo Trump.
O curta-metragem começa com um dos muitos panelaços realizados em concomitância com o início do Jornal Nacional. Neste constante processo de desatualização, a notícia da época era o assombro sobre mais uma manifestação desumana do “mito” sobre a marca de cinco mil mortos por covid-19 – o que nos fazia ultrapassar a China. Hoje são mais de meio milhão de brasileiros oficialmente mortos pela doença – e a nação mais populosa do mundo ainda não chegou aos cinco mil.
É notável a forma como as diretoras extraem complexidade em pouco menos de vinte minutos. A partir desta introdução, somos provocados a repensar a maneira como consumimos informação neste período de quarentena. Elas definem como “manhãs de plantas e políticas”. Houve um tempo em que éramos tentados a dialogar constantemente sobre a profusão de notícias que nos atropelavam a cada instante. Passado um ano e meio, é mais difícil encontrar quem esteja nesta toada, até mesmo aqueles que trabalham com isso. Longe de naturalizar a morte, mas nossa relação com as ferramentas mudaram.
Dentre elas, a própria ideia de correspondência, tal qual representada no filme. Em mensagens instantâneas, acompanhadas de conteúdo em áudio e vídeo, nunca foi tão fácil se manter distante dos outros. E, mesmo assim, os meios utilizados também se tornaram danosos com o tempo. Uma fase difícil, onde tudo parece fazer bem e mal ao mesmo tempo, em uma avalanche imagética que não temos mais desejo de qualificá-las. Isso vai de encontro com um dos debates do recorte de preservação audiovisual desta CineOP, que fala dos registros atuais de todos nós – seja de maneira profissional ou pessoal, para redes sociais.
Enquanto curadores de nós mesmos, produzimos em todos os momentos do dia. Mesmo assim, a imagem ainda é capaz de nos provocar sentimentos fortes, como deve ser a reação da maioria ao assistir uma das carreatas negacionistas captadas por Fernanda. Em determinado momento de “Igual/Diferente/Ambas/Nenhuma” nossas personagens perdem a noção dos dias e começam a viajar por mundo que a continuidade da sessão de curtas-metragens representará. Ainda no campo da consciência, há espaço para lembrar alguns dos vilões dos grandes centros urbanos, que vieram antes e ficarão para depois da pandemia: a especulação imobiliária e a política de segurança racista e fascista.
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Por mais que Pedro Tavares use como base imagens históricas de Nova York como paradigma de grandes centros urbanos, “Não se Pode Abraçar uma Memória” soa como um portal em que presente, passado e futuro coabitam. Ele sobrepõe essas ideias de temporalidade nas mesmas representações, enquanto apresenta uma carta que vê a ocupação de territórios como um exercício saudosista em nossas infinitas quarentenas. Do pré-cinema ao Cine-Olho de Dziga Vertov, o cineasta se fixa no medo, este que atravessa os séculos XX e XXI e todas as transformações provocadas por uma sociedade em alta velocidade rumo ao seu esgotamento.
Esta ideia por trás da modernidade, registrada pelas primeiras décadas do audiovisual e pensada pela Filosofia e Antropologia desde sua gênese parece adentrar seu ato final. “Durante aqueles meses, o futuro ficou dormente“, diz Pedro e parece com sua criação propor um futuro de ressignificação do conceito de cidade. Os impactos da pandemia soam como a pedra fundamental deste processo, como se dividíssemos os espaços não mais em dois, mas em três: rural, urbano e tecnológico. Os dois últimos se misturarão até quando? Pelo menos enquanto forma, o diretor encontra uma maneira de condensá-los.
Faz isso em uma união de sons e trilha (de Bianca Zampier) que remontam ao clássico, ao contemporâneo e ao industrial. As imagens se sobrepõem não apenas em duas camadas identificáveis, mas em um montagem que contrasta as possibilidades que um mundo em ritmo de ressignificação promove. Nas palavras que surgem na tela, Tavares deixa um ar de lamento por uma vida que não existe mais. Foi interrompida, em um período trágico o qual vivemos. E que nos levou um jovem cineasta no ano passado, Eli Hayes – ao qual a obra é dedicada. Para além de existência enquanto sociedade e nas dinâmicas da cidade, “Não se Pode Abraçar uma Memória” nos lembra daquele tipo de existência que parece esquecida por nossos pares: a nossa, enquanto indivíduos. Todos com medo do que vem por aí e, infelizmente, nem todos com força para resistir.
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Já “No Verso tem um Céu“, de Jonta Oliveira adiciona o onírico e a confusão de expressões de cotidiano que estamos passando nos últimos meses neste caldeirão. Um início extremamente mundano traz mãe e filho assistindo TV na semana do Dia das Mães de 2020 – marcado pela inesquecível (para as mães, claro) live do cantor Roberto Carlos. Famílias classificadas pela distância ou coabitação profunda, nas 24 horas do dia. Isso tem levado parte de nós a sonos perturbados e sonhos cada vez mais perturbadores.
Desta forma, o realizador nos transporta para partes de memórias confusas e dissonantes – em que aquelas projeção sobre objetivos e motivações mencionadas no primeiro curta-metragem da sessão voltam a ser instigadas (e a pequena obra seguinte ampliará essa proposta). Oliveira vai muito além no espaço e no tempo em uma criação que resgata a ideia de um cosmos uterino e umbilical, em um outro tipo de busca por origens na massa de pensamentos que se tornou nossos dias.
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Do Cinema que nos deu tecnologia a partir da guerra, “Rocio das Vagas” nos lembra da atriz austríaca Hedy Lamarr, que além de sua contribuição artística inventou a frequência que nos permitiu ter telefones celulares – e nossas vidas dominadas por eles. Com pouco mais de três minutos de duração, o curta-metragem de Rodrigo Faustini cria, a partir dessas frequências irregulares de ondas de informação, uma obra que nos leva a refletir sobre a incompletude.
Não apenas aquela que levará Flora Nakazone em “Desvio” a propor ocupação do vácuo com nossas projeções e vivências. Em um viés que nos leva mais à Era da Informação, o cineasta aqui faz pensar sobre o atravessamento que sons e imagens partidas nos leva. Ou seja, a incompletude que nos motiva a extrair significado a partir das nossas percepções. Dentro do experimentalismo que remonta a uma arquivologia, o filme é muito atual pela temática, de um período em que somos alimentados por bolhas criadas por nós mesmos.
As representações quebrantadas do diretor nos leva ao questionamento crítico – um exercício cada vez menos desempenhado pela zona de conforto em que aceitamos estar para o bem de nossa saúde mental. Ao fazer isso, ele reflete um dos grandes objetivos de boa parte do cinema brasileiro contemporâneo, que deverá nos salvar a partir do momento em que bagunçar as frequências de uma quantidade maior de pessoas.
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Finalizando a densa sessão de curtas-metragens, que em pouco mais de uma hora levou a Apostila de Cinema a filosofar até sobre o imponderável, “Zona Abissal” é a nova criação de Luisa Marques e Darks Miranda. Eles, que já haviam apresentado na Mostra de Cinema de Tiradentes deste ano o provocante e provocador “Lambada Estranha” retornam a um ambiente distópico e desbundante, a partir das duas leituras possíveis do título do filme.
Portanto, a obra tanto é aterrorizante e misteriosa quanto resgata elementos das profundezas do planeta da tela em um apocalipse que parece vendido como única solução para o planeta – extirpando nossa existência, como já deveria ter feito. Pelo fogo e pelo pixel, os cineastas realizam essa proposta de destruição pela ótica da fruição. Pode soar incômodo, como pode soa divertido. Para os maratonistas de festivais, a ponta final de uma viagem de consumo audiovisual que nos alimenta como um torpor.
Em colagem que começa com Tarkovsky e vai até a gênese do olhar cinematográfico brasileiro de Humberto Mauro (passando por documentários televisivos sobre natureza), encerramos com esta carga de experimentalismo e encontramos as últimas expressões de existência extraídas de uma série de casos fortuitos, como se não percebêssemos o cataclisma constante que é estar vivo.
Ficha Técnica da Sessão Cine-Teatro | 16ª Cine OP
Desvio (Flora Nakazone, 2020, 9′)
Sinopse: Um filme feito com imagens encontradas no lixo, sobre um país sem memória. Uma tentativa de elaboração do passado por meio de cartas sem remetente ou destinatário nomeados. Uma carta é feita de desejo. Não importa se será lida. A autoficção como caminho de busca pela origem, rumo a tocar aquilo que dorme.
Igual/Diferente/Ambas/Nenhuma (Adriana Barbosa e Fernanda Pessoa, 2020, 19′)
Sinopse: Em um período de isolamento, distantes uma da outra, duas amigas se reconectam por meio de vídeo-cartas, inspiradas pelo olhar poético de cineastas mulheres experimentais: Marie Menken, Joyce Wieland, Gunvor Nelson e Yvonne Rainer. Fernanda é brasileira e mora em São Paulo, Adriana é mexicana-brasileira e mora em Los Angeles. Elas compartilham sua inspiração enquanto capturam a realidade destes tempos: os panelaços contra o Bolsonaro, uma mudança de casa, o passar dos dias que parecem todos iguais, a gentrificação que não para mesmo durante uma pandemia, os protestos Black Lives Matter e o desejo de se encontrarem novamente em breve.
Não se Pode Abraçar uma Memória (Pedro Tavares, 2021, 9′)
Sinopse: Entre a partida e a chegada do trem.
No Verso tem um Céu (Jonta Oliveira, 2021, 14′)
Sinopse: Dentro do cotidiano, uma transformação irreversível está prestes a acontecer, um jovem se livra da razão e da consciência mergulhando em sonhos, memórias e realidades.
Rocio das Vagas (Rodrigo Faustini, 2020, 3′)
Sinopse: Evento e murmúrio: modular a atenção entre canais fluídos, como sintonizar aleatoriamente no rádio, pode revelar mensagens no ruído. Essa foi uma das bases para a técnica de “salto de frequência” de Hedy Lamarr, que deu a lógica das redes móveis atuais. Quando vamos à praia, redes de transmissão falham, saltamos ondas, vagamos em busca de sinal e aspersos, acumulamos tempos mortos. Arquivos Super8 digitalizados, filmados na década de 70 e revelados apenas em 2020.
Zona Abissal (Luisa Marques & Darks Miranda, 2020, 13′)
Sinopse: Um ser híbrido surge da exploração do látex e tenta sobreviver em meio à destruição do mundo como conhecemos, junto a outros seres reais e imaginados, agarrando-se ao que ainda pode existir depois do fim.
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