Sinopse: “Slalom – Até o Limite” conta a história de Liz, uma promissora menina de 15 anos, treina como uma estrela do esqui profissional sob orientação de um rigoroso ex-campeão, Fred. A relação dela com o treinador se torna cada vez mais intensa, até se transformar em violência.
Direção: Charlène Favier
Título Original: Slalom (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 32min
País: França | Bélgica
Sem Rota de Fuga
Uma das quinze atrações internacionais do Festival do Rio 2021, que acontece na próxima semana de forma televisiva e online na rede de canais e plataforma de streaming Telecine, “Slalom – Até o Limite” é mais um ótimo drama que vincula as pressões do esporte de alto rendimento e as transformações do corpo feminino como mote. Nos últimos meses, a Apostila de Cinema trouxe outros dois longas-metragens que dialogam com esta premissa: o brasileiro “Raia 4” (2020), que também permitiu uma entrevista com o diretor Emiliano Cunha; e o suíço “Espacate” (2020) – sobre natação e ginástica artística, respetivamente. Porém, a carga dramática que Charlène Favier impõe é ainda maior, por tocar em um tema bem mais difícil, relacionado a assédio sexual, estupro e coação moral.
A cineasta o faz impondo uma estética virtuosa à narrativa, que usa roteiro da própria Favier ao lado de Marie Talon. Percorrendo alguns festivais europeus nos últimos meses, o último o de Gotemburgo, a co-produção entre França e Bélgica reflete uma maturidade precoce da diretora, ainda em seu primeiro longa-metragem de ficção. Baseia a frieza da protagonista Lyz Lopez (Noée Abita) e do centro de treinamento na estação de esqui de Bourg-Saint-Maurice, na região de Savoie, aplicando filtros que tornam as imagens predominantemente azul acinzentadas. Pouco espaço para desvirtuar-se enquanto jovem, a personagem passa por diversos estágios de abuso praticados pelo treinador, Fred (Jérémie Renier).
Começa nos primeiro minutos de “Slalom – Até o Limite“. Antes de provar seu talento promissor no esporte, ela é chamada pelo sobrenome, Lopez – de origem latina. O olhar da câmera reflete as diversas diferenças da menina para um padrão dos presentes na peneira dos atletas. É nítido que ela alimenta um sonho de sucesso, potencializado pela vida familiar. Seus pais se separaram e a mãe precisa trabalhar muito para manter a filha – ao mesmo tempo que deseja recomeçar a vida amorosa em um novo relacionamento. Lyz tem apenas quinze anos, o que gera um ruído de comunicação de graves consequências.
Aos poucos ela desenvolve uma paixão juvenil pelo técnico – que a transforma em Lyz quando ela prova sua capacidade de ser a melhor. Dali em diante sua rotina passa a ser equilibrar as mudanças de seu corpo, que sofre duro impacto de longas séries de exercícios e suplementos alimentares para lhe dar ganho muscular, com o que é possível de “normalidade” em uma adolescência marcada pela pressão. Fred é daquele tipo de treinador que usa as duras palavras e a diminuição de seus pupilos para forçá-los a serem melhores. Isso torna sua figura um pouco mais encantadora para a menina, que vive uma fase de descobertas.
Na metade do longa-metragem, Favier vira a chave. Apesar de seguir um caminho lógico pelo que se apresentava na narrativa, as investidas de Fred possuem a dimensão de sua atitude criminosa. Um debate sempre difícil na sociedade – e que tem no cinema exemplos bem problemáticos. Antes era mais comum que as representações dentro desta temática caíssem para um conteúdo romantizado ou fetichista. A diretora passa longe disso e consegue refletir o quão grave é a situação colocada ali. Em um excelente trabalho de Noée Abita (com vinte anos à época das filmagens), o espectador é conduzido por uma protagonista que precisa lidar com algo não completamente compreendido por ela assim que o abuso se materializa.
Ao contrário de “Trópico Fantasma” (2020), outro bom filme que usa as paletas frias de forma proporcional em toda a obra, a cineasta vai tornando as imagens mais densas. No ato final há momentos em que a escuridão toma conta da cena, antes de luzes vermelhas ganharem forma. Parte da incompreensão e da dificuldade de perceber a urgência de Lyz pode ser creditada (sem juízo de valor acerca da responsabilidade) àquele ruído de comunicação que existia com sua mãe. Fred ganha uma importância em sua vida porque ele supre lacunas. Enquanto figura paterna, como pessoa de confiança e até como o flerte adolescente. Ao agir de forma abjeta, o estranhamento que ele provoca na menina torna tudo ainda mais confuso para ela.
Não são raros os casos de uso da posição de autoridade para abusos físicos e psicológicos no mundo do esporte. Atletas renomados, como a nadadora Joanna Maranhão, já tornaram públicos seus históricos, na tentativa de incentivar as denúncias e diminuir a ocorrência desses crimes.
“Slalom – Até o Limite“, por ser tão cruel quanto crível, nos faz pensar o quão distante estamos de não mais ouvir essas histórias. Tecendo uma situação que dá ao abusador meios de justificar para si mesmo os seus atos injustificáveis, o drama de Charlène Favier é um duro encontro com a realidade.
Veja o Trailer: