Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo

Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo Crítica Filme Brasileiro Pôster

Sinopse: José Renato (Irandhir Santos) tem 35 anos, é geólogo e foi enviado para realizar uma pesquisa, onde terá que atravessar todo o sertão nordestino. Sua missão é avaliar o possível percurso de um canal que será feito, desviando as águas do único rio caudaloso da região. À medida que a viagem ocorre ele percebe que possui muitas coisas em comum com os lugares por onde passa. Desde o vazio à sensação de abandono, até o isolamento, o que torna a viagem cada vez mais difícil.
Direção: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes
Título Original: Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo (2009)
Gênero: Drama
Duração: 1h 15min
País: Brasil

Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo Crítica Filme Brasileiro Imagem

O Viajante Acidental

Em mais uma preciosidade do cinema brasileiro contemporâneo, “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo” chegou ao catálogo da Netflix nesta semana. Apresentado em mostra paralela do Festival de Veneza no ano de 2009, o longa-metragem foi uma aposta ousada de uma dupla de cineastas que começavam a dominar a produção nacional naquela época. Aqui eles se propõem a traçar um novo retrato do país, fora das convenções mais tradicionais de suas obras anteriores, mas criando uma narrativa tão envolvente quanto os novos clássicos que acabavam de lançar.

O cearense Karim Aïnouz já era celebrado por “Madame Satã” (2002) e “O Céu de Suely” (2006). O pernambucano Marcelo Gomes festejado por “Cinemas, Aspirinas e Urubus” (2005). Uma confluência estética e de uma temática que aplica o olhar marginalizado (e não marginal), que se unem em um projeto com ares de documental. Apenas com a voz, o ator Irandhir Santos (até então destaque no filme já mencionado de Marcelo e em “Baixio das Bestas“, que Cláudio Assis lançou em 2006) constrói um personagem sólido para nossos ouvidos, porém líquido para todos os outros sentidos. José Renato se apresenta como um geólogo de 35 anos (a idade a qual chegarei em menos de dois meses), que viaja porque precisa, claro.

Ele atravessará o sertão nordestino em uma pesquisa de campo de trinta dias para o projeto de um canal capaz de trazer água para locais de seca. Impressiona o quanto a trajetória do personagem remonta a uma fluidez, tanto sobre seu ofício, quanto pela paixão que mantém pela galega Joana. Filmando em Super 8, Karim e Marcelo querem trazer uma textura de imagens que nos envolva nesse caminho de inquietude melancólica de José. Por várias vezes a opção pela fotografia pura contribui ainda mais para o sentimento de documentação. Para mergulhar na viagem do protagonista é preciso esperar – principalmente, por ele. Quando atingimos este ponto, os registros ganham uma dimensão maior e a ideia de retrato de um tempo parece se formar.

Quando não viajamos por essa estática imagética, viajamos por outra, as das ondas do rádio. A estrada nos traz paisagens que mudam rápido para aqueles que passeiam por diversão, porém devagar para quem só quer cumprir um objetivo. A música é companheira e a trilha do filme traz a atemporal “Sonhos”, do compositor paulistano Peninha, a imortal “Morango do Nordeste” do maranhense Lairton Paulino da Silva, conhecido como Lairton e Seus Teclados – e uma releitura do mesmo para “Dois”, conhecida na voz de Paulo Ricardo, escrita pelo ex-RPM em parceria com um dos recifenses que moldaram a cultura popular do eixo sul das últimas décadas: Michael Sullivan, que de carreira tão ampla e desmembrada merece um texto a parte no futuro.

Ouça “Dois”, na versão de Lairton e Seus Teclados:

O caminho inicial de José em “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo” é do pouco envolvimento com o projeto. Ele está ali para cumprir uma ordem, para desempenhar seu trabalho e voltar para Joana. Pouco se importa com as prováveis remoções forçadas e desocupações coagidas das famílias que ele encontra. Desperta sua atenção apenas um casal de idosos, que são como unha e carne há décadas. A obsessão do personagem está no amor que ele deixou, portanto, o que fica para o espectador é uma mistura de projeções da própria história do narrador e os momentos em que ele repete à exaustão o quanto está com saudades e o quanto precisa voltar. A quebra dessa lógica é marcada na passagem pelo cenário inconfundível de Juazeiro do Norte, onde a estátua de Padre Cícero lhe abençoará.

Nada como a distância para bagunçar nossos sentimentos e o filme nos permite a todo o instante refletir essas mudanças. Com o passar dos dias, o amor idealizado começa a ser autoquestionado, por vezes se transformando em raiva e em rancor. O abandono de Joana parece trazer apenas mágoa e nosso condutor começa a sair daquela projeção sobre sua vida. Passa a aplicar o olhar sobre os outros e isso faz com que a segunda metade do filme nos afete em outro nível. A música vem como representação na narrativa, inclusive um bonito registro de um dos grandes sambas de Noel Rosa, “O Último Desejo”, que já foi assunto em nossa crítica de “Noel – Poeta da Vila” (2006).

Com isso, os cineastas exploram diversas formais de união entre proposta de ficção exercitada por Irandhir e a linguagem documental dos grotões de um Brasil que nunca consegue se ver com fidelidade. Aqui está uma das grandes contribuições deste momento do Cinema Brasileiro, de rompimento informal com a Retomada (que retomava, dentre outras coisas, o olhar com viés exótico do sul do país sobre o Nordeste). Uma obra que não se desprende da narrativa, mas foge de qualquer chance de obviedade. Mais de dez anos se passaram e o longa-metragem parece se erguer, ainda, como um desafio para o espectador mais tradicional. Porém, uma chance de sair do conforto de um catálogo mainstream sem se arriscar tanto.

Quando estamos envolvidos na produção cultural contemporânea do país é difícil projetar leituras sobre uma criação tão comentada e estudada quanto essa aqui. Parece não ter, dentro de uma crítica simplista e de limitação de espaço como temos aqui, muito mais a dizer do que a receptividade acalorada que sempre acompanhou “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo“. Visto por mim no início do isolamento há um ano, quando não existia Apostila de Cinema, a ideia de deslocamento de José Renato como algo distante parece ter evaporado nessa releitura. A carcaça endureceu dentro da lógica de nova melancolia a qual estamos vivendo. Mesmo assim, ainda toca a quem espera tempos seguros para viajar e voltar, por qualquer motivo. A necessidade e amor, mais do que nunca, serão os incentivos que fará iniciar novos ciclos de movimentações, fundamentais para que sigamos vivos – enquanto indivíduo e sociedade.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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