Ana. Sem Título

Ana. Sem Título Crítica Filme Pôster

“Ana. Sem Título” é a estreia da semana. Leia a crítica.

Sinopse: Stela, uma jovem atriz brasileira, decide fazer um trabalho sobre as cartas trocadas entre artistas plásticas latino-americanas nos anos 70 e 80. Viaja para Cuba, México, Argentina e Chile à procura de seus trabalhos e de depoimentos sobre a realidade que elas viveram durante as ditaduras que a maior parte desses países enfrentaram na época.  Em meio à investigação, Stela descobre a existência de Ana, uma jovem brasileira que fez parte desse mundo, mas desapareceu. Em 1968, Ana foi do sul do Brasil, de uma pequena cidade do interior, para a efervescente Buenos Aires, que vivia um momento de mudança nas artes plásticas e no comportamento. Obcecada pela personagem, Stela resolve encontrá-la e descobrir o que aconteceu com ela.
Direção: Lucia Murat
Título Original: Ana. Sem Título (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 50min
País: Brasil

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Quantas Anas?

A partir de captação de imagens de uma exposição na Pinacoteca de São Paulo, sobre mulheres que romperam fronteiras pela arte e foram acusadas de radicalismo, “Ana. Sem Título” nos leva pelos caminhos de uma América Latina de muita luta. A mais recente produção de Lucia Murat, que chega amanhã ao circuito comercial brasileiro após passagem na Mostra SP do ano passado, é a primeira desde “Praça Paris” (2017), uma obra com um atravessamento sobre as relações de poder envolvendo classe social e, sobretudo, raça, na sociedade brasileira.

Agora, a cineasta usa ficcionalidade e documental, percepções e vivências pessoais, aliadas a leituras coletivas. Realiza com um equilíbrio pouco visto – de difícil consolidação e eficiência em uma narrativa híbrida. Faz da impossibilidade de classificação a força do filme e não um elemento que o despersonaliza. Além de ter um toque de aula de História por culpa de um povo que tem dificuldades de se encontrar com o passado. Inspira-se na peça “Há mais Futuro do que Passado” (que circulou por Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília em 2017), com dramaturgia de Clarisse Zarvos e Mariana Barcelos e equipe formada totalmente por mulheres. Mais do que “função” ou “importância”, o questionamento das obras – cinematográfica e teatral – é sobre o lugar da mulher latino-americana na história da arte.

Enquanto a montagem cênica transforma as atrizes em operadoras, com movimentações cênicas que tornam a atuação parte da produção, o longa-metragem segue também um duplo caminho. Em cena, a cineasta e equipe que a acompanha traça uma simbiose entre representação e persecução. Constroem uma história ao mesmo tempo que resgata, expõe e explora outras. Passa por Havana, Buenos Aires, Santiago, Cidade do México e a menos famosa Dom Pedrito. No exercício ficcional, Ana é a testemunha ocular de um tempo, além de agente ativa deste processo. Seus passos a levariam pelas mais diversas expressões de desumanidade em regimes ditatoriais do continente entre as décadas de 1960 e 1980, começando pelo seu próprio país.

Stella Rabello é uma atriz que tentará refazer os passos desta mulher para entendê-la. Durante a jornada, claro, acessará os meios que nos conectam enquanto latino-americanos. Para além, a luta de mulheres apagadas da História contemporânea e o racismo imposto à onipresente protagonista.

A estreia de “Ana. Sem Título” acontece uma semana após Ismael Caneppele propor uma junção também interessante em “Música para Quando as Luzes de Apagam“, mas seguindo um expediente diferente, o de quase abandono da narrativa. Aqui há uma busca por enquadrá-la, tornar o que está sendo contado mais digerível ao espectador-médio – potencialmente mais desinformado, esquecido ou negacionista. Murat sempre é, em certa medida, uma personagem de suas obras e desta vez ela se coloca de forma ativa – em roteiro produzido ao lado da escritora Tatiana Salem Levy. Em uma época em que o audiovisual usa a arquivologia das imagens com produtora e reprodutora de novas memórias, a realizadora quer uma convergência de conhecimentos, vivências e criações que só a adição ficcional tradicional consegue provocar.

Tanto que na página oficial do filme (a qual recomendamos porque traz, sobretudo, informações sobre as mulheres reais retratadas), há de plano a menção a “Um Teto Todo Seu“, de Virginia Woolf. Lançado logo após seus escritos que consolidavam o fluxo de consciência como importante ferramenta narrativa – algo que o audiovisual tão bem absorveu nas décadas seguintes, a autora britânica já propunha em ensaio a ocupação dos espaços, sobretudo nas artes, por mulheres. Quase cem anos depois, o filme de Murat joga mais uma vez os holofotes sobre o tema. Só que pelo prisma cruel do duplo sufocamento de vozes e expressões: quando das representações em curso e de forma posterior, quando lhe são negadas as memórias de seus feitos.

Isso faz com que, dentre os vários debates possíveis que o longa-metragem permite, esteja o da ética de se apropriar das palavras. Em paralelo, a historiografia das artes latino-americanas, da pintora mexicana Frida Khalo à cineasta argentina Maria Luisa Bemberg. Murat quer compreender motivações por trás destas invisibilidades, criando uma Comissão da Verdade própria, em territórios os quais elas não trouxeram tanto resultados efetivos (a do Brasil nem se fala e há quem diga que o pouco de conhecimento gerado foi uma das motivações do golpe à única Presidenta que tivemos).

Alguns desses pilares da herança maldita das ditaduras são revisitadas – ou apresentadas aqueles que não conhecem. Do Museu da Memória e dos Direitos Humanos no Chile ao registro das Mães da Praça de Maio, grupo que nasce nos anos de chumbo argentino e que permaneceu (e permanecerá) ativo para que nunca nos esquecemos. Quando falamos de nossa realidade, vem à mente a relação brasileira com o período iniciado com o golpe civil-militar de 1964. Fase encerrada de forma obtusa, com uma anistia de mão dupla e uma redemocratização paulatina que nunca se preocupou em manter defensores de torturas, dentre outras crueldades, dos pleitos futuros. A prova é um deles ocupar a cadeira de Presidente da República atualmente.

Porém, o filme – nos momentos em que se assume documental – mostra que essas veias abertas não são nossa exclusividade. Muito se fala na incomunicabilidade de nossa sociedade com os vizinhos, o que leva a falsas (ou incompletas) sensações. A obra é, também, um pouco isso, ao mostrar que a busca por desaparecidos e os traumas pelos mortes e prisões cruéis não foram superadas também em outros territórios.

“Ana. Sem Título” se compõe enquanto mosaico. Usa desde videoartes de arquivo a representações da arquitetura dos centros urbanos por onde passa para mostrar que a linha espaço-temporal é tênue. Propõe uma releitura de um clássico do período, “Me Gritaron Negra” de Victoria Santa Cruz, ao mesmo tempo que evoca novas vozes, como a carregada de potência de Alice Caymmi em “Areia Fina“.

Nos últimos anos, o acesso ao audiovisual dos países fora do eixo tornou mais presentes algumas figuras – e Lucia Murat não apenas é uma representante, como parte fundamental do registro de seu tempo. O Chile de Allende, por exemplo, é a linha de partida da filmografia de Miguel Littín – homenageado com uma mostra online gratuita há alguns meses, dentre eles “Companheiro Presidente” (1971). Assim como Patricio Guzman, hoje cineasta lido como fundamental para as novas gerações e suas formas de traçar uma curadoria própria para seus estudos sociais e de linguagem dentro do Cinema. Não há como não se lembrar de “A Cordilheira dos Sonhos” (2019), seu documentário mais recente, quando o filme também vai ao Estádio Nacional, templo do esporte transformado em centro de tortura.

Por outro lado, passagens menos notórias para o público ganham forma. O Massacre de Tlatelolco no México é um deles. “Ana. Sem Título” evita o didatismo e propõe o suprimento de lacunas pela ideia de que Ana atravessou e foi atravessada por todos esses acontecimentos. Sem deixar de olhar para o presente, que nos mostra a cada dia que os ratos nunca deixaram de nos rondar de seus esgotos. A geração representada por todas essas mulheres, incluindo Lucia Murat, não merecia testemunhar essa repetição do passado. Mas, sob o risco de o fazê-lo, a cineasta prova que ainda tem desejo e força para não deixar esta caravana nos atropelar de novo.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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