Sinopse: Inspirado por um livro dos Panteras Negras, o introvertido Saulo Chuvisco tenta impor mudanças em sua escola e acaba entrando em conflito com alguns colegas e professores. Após reagir a um insulto em sala de aula, Saulo é expulso, mas recusa-se a deixar as dependências da escola por tempo indeterminado.
Direção: Déo Cardoso
Título Original: Cabeça de Nêgo (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 25min
País: Brasil
Nem Foi Tempo Perdido
“Cabeça de Nêgo” é um filme que causa certa surpresa pela seleção na Mostra Tiradentes, que costuma buscar caminhos mais experimentais e, por que não dizer?, menos palatáveis de representação; ao mesmo tempo que torna impossível sua não ocupação desse espaço. Uma das melhores produções de 2020 consegue unir a mensagem direta de uma narrativa envolvente com suas próprias permissões, de visualidades próprias e carregadas de personalidade. É como se o apego ao tradicional de “Sertânia” encontrasse a politização indireta do discurso de “Cavalo“, para mencionarmos os outros destaques do audiovisual brasileiro dos últimos meses. Aqui, mais do que a corporalidade, Déo Cardoso usa os cânones cinematográficos para atingir seu objetivo, em um longa-metragem inesquecível para o público e equipe de produção, desde a sua concepção.
Imaginado no meio das ocupações das escolas secundaristas em 2017, muito forte no Estado de São Paulo, o filme começa a ser trabalhado pelos atores em conjunto com seu diretor em fevereiro de 2018. Um mês depois, Marielle Franco é assassinada e o que seria um processo de imersão em uma obra cinematográfica, se transforma em uma construção coletiva culminando em algo único em suas propostas de debates sociais pela forma direta com a qual aborda. É como se a possibilidade da linguagem comercial encontrasse a contundência da realização periférica, alternativa, independente. “Cabeça de Nêgo” é o infiltrado, não na Klan, mas se valendo das mesma possibilidades do filme que Spike Lee lançou em 2018 – e até hoje só quem não conhece o lobbysmo do cinema hollywoodiano não entendeu a derrota para “Green Book – O Guia” (2018).
Por sinal, Déo comunga com as duas fases mais criativas do cineasta norte-americano, justamente nas pontas de seu longa-metragem. O início, após um prólogo representativo, nos insere no ambiente escolar – com adolescentes aparentemente desinteressados (importante ponto de observação do documentário “Atravessa a Vida“) e que usa as novas tecnologias para – ao produzir seus próprios conteúdos – ter uma sensação mais forte de autonomia. Rapidamente o antagonismo de um membro do corpo docente da escola se manifesta, em oposição direta ao caminho da informação e da formação de jovens que, diferente de gerações passadas, não precisaram viver as consequências para identificar o que na sua adolescência é uma perda de tempo (expressão com direito a meme).
Ao mesmo tempo em que renegam essa lógica engessada de sociedade por instituições falidas e envelhecidas como a escola, aqueles garotos e garotas têm suas referências – e dentro da própria instituição. O protagonista Saulo, então, tenta aplicar o que aprendeu com sua professora sobre a luta dos Panteras Negras e os discursos de Angela Davies naquela micropartícula de sociedade. Cansado de sofrer racismo e bullying dos colegas de sala, sua reação um pouco mais violenta gera a sanha punitivista do “educador” intolerante (mais com algumas coisas do que com outras). Só encontra uma perversidade parecida na breve cena em que uma reporte no estilo Rachel Sherazade pré-eleição de Bolsonaro, chega a babar e lambuzar sua roupa de tanto preconceito cuspido em seu microfone em suas caras e bocas. De maneira quixotesca, o adolescente ocupa a escola e só sairá dali quando todos os alunos injustamente expulsos forem readmitidos na instituição. A história emociona com o apoio daquela que é, sem dúvida, a grande referência dentre todos os ensinamentos e livros que poderemos alcançar: a própria mãe do personagem.
Saulo começa, então, a denunciar os erros da sua escola. As condições precárias dos banheiros, os ratos transitando impunemente pela cozinha e o depósito cheio de livros novos mofando em sua forma e conteúdo. Com isso, aquela ambientação de um núcleo periférico do final dos anos 1980 e início dos 90 de Spike, uma atualização de linguagem dos jovens da época, se transforma em uma narrativa que nos deixa hipnotizados pela obra, tal qual os bem-sucedidos thrillers e filmes de guerra mais recentes. A classe política se faz presente em uma tentativa de criar um incidente que permita que mais violência seja aplicada ao representante do povo preto e pobre que, vejam só, queria apenas estudar. Saulo, sozinho naquele lugar à noite, fazendo suas transmissões pelo celular, dialoga de corpo e alma com grandes revolucionários silenciosos. Mais do que trazer o verniz da ficcionalidade aos registros de documentários como “Espero tua (re)volta” (2019) de Eliza Capai, “Cabeça de Nêgo” encontra seu caminho. Poderia ser um conglomerado de referências artísticas, políticas e intelectuais. Amaríamos mesmo que aplicasse suas doses de saudosismo de uma sociedade que vê repetir e repetir casos de injustiça social e racismo em praça pública, do velado ao estrutural.
Só que Déo Cardoso e equipe vão a fundo no intento de transformar a obra em algo único. Com isso, a professora vai até onde lhe cabe. Os ensinamentos de Davies e dos Panteras Negras, serão aplicados de forma crítica com muito carinho. O rock burguês que tanto fez reducionista a esquerda brasileira, então, parou aqui mesmo no título do texto. Saulo, somente Saulo (e assim vamos lhe chamar) é o único capaz de fazer o que é melhor para aquela escola e aquela comunidade. Em uma das cenas mais lindas de 2020, ele registra algumas de suas inspirações nas carteiras da sala. “Canto dos Ossos” venceu Tiradentes – um excelente filme, com o adicional de ser mais “a cara” do festival. Mas “Cabeça de Nêgo” ganhará, assim esperamos, uma legião de jovens que verão em Saulo a materialização de suas indignações juvenis.
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