#EAgoraOQue

#EAgoraOQue Rubens Rewald Jean-Claude Bernadet Filme Crítica Mostra SP Imagem

Logo Mostra SP 2020Sinopse: Como agir politicamente hoje? É possível mudar as coisas, as pessoas, a sociedade? E agora, o que fazer? Um intelectual e suas contradições. Esse é o mote do drama político dirigido por Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald.
Direção: Rubens Rewald e Jean-Claude Bernadet
Título Original: #EAgoraOQue (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 10min
País: Brasil

#EAgoraOQue Rubens Rewald Jean-Claude Bernadet Filme Crítica Mostra SP Imagem

Alinhamentos

Uma menina aparece jogando em seu aparelho de telefone celular logo no início de “#EAgoraOQue“, documentário que reúne Rubens Rewald (diretor de uma das mais apreciadas produções do Festival É Tudo Verdade 2020 pela Apostila de Cinema, “Jair Rodrigues – Deixa que Digam“) e o crítico-professor-ator Jean-Claude Bernadet. Uma obra que tratará do choque geracional sob o viés político, uma preocupação em olhar adiante. Entendendo vivermos uma realidade onde análises casuísticas não comportam nosso momento, eles entregam um documentário bastante provocador – um misto de inquietude a partir de simulações ficcionais e mea-culpa de um elite intelectual que percebe que a superação não é necessariamente algo danoso e comporta o diálogo com quem deseja ver uma sociedade mais justa e igualitária.

O filósofo Vladimir Safatle é  a linha mestra do filme. A partir dele somos levados a estranhamentos que partem desde o prazer inveterado de matar gente em uma atividade de entretenimento (o já mencionado jogo eletrônico) até o racismo institucionalizado. De início, o documentário joga alguns dados que parece nos remeter à peça de teatro “Contos Negreiros do Brasil”, que correu os palcos do Rio de Janeiro com uma mistura de adaptação do livro de Marcelino Freire com os dados estatísticos das pesquisas realizadas pelo acadêmico e ator Rodrigo França, que estrelava o espetáculo. Só que aqui temos uma construção audiovisual de um grupo que sabe de seus privilégios e é interessante ver que não se esquivam dessa abordagem.

A crítica de Bernadet, mais performático do que Safatle em “#EAgoraOQue“, trata da esquerda como força reativa e parece ir de encontro com uma das cenas mais emblemáticas do filme. Ela ocorre em um grupo de conversa, onde feministas brancas, que militam tempo suficiente para terem participado da Segunda Onda das décadas de 1960 e 1970, admitem que passaram a vida lutando por causas que – nem sempre – não eram suas. A ausência de representatividade fazia com que, por vezes, elas partissem de princípios que não se coadunavam com os anseios de grupos que elas supostamente defendiam. Essa parte introdutória tem o condão de abrir espaço para falar da importância da interseccionalidade. Contudo, em fuga do didatismo.

Quando produziu o documentário sobre Jair Rodrigues, Rewald se preocupou em falar da questão da negritude e de como a atuação aparentemente apolítica do grande cantor poderia ser vista como grande resistência. Fica a sensação de que estamos diante de uma obra que se contrapõe e, ao mesmo tempo complementa o outro projeto. “#EAgoraOQue” traz a arte política como grande pilar de sua narrativa e faz um confronto com os próprios ídolos brancos que se criaram ao longo do tempo. De Bernadet ao saudoso Abujamra, temos grandes discursos que se apresentam. Todavia, é fundamental que haja reflexão sobre esse colegiado de grandes mentes, um grupo que se acostumou a falar.

Um documentário como este tem um caráter apaziguador fundamental. Ironicamente, a partir de performances e provocações. Porém, na Era do Cancelamento, ouvir Safatle ser chamado de fascista por um homem negro (interpretado pelo genial Valmir do Coco de “Azougue Nazaré“) que troca todo o conhecimento acadêmico por uma vida de opressão sem que o filósofo saiba como rebater é assistir a desconstrução do homem de meia-idade, tão perdido em um mundo que não lhe quer mais protagonista como o personagem de “Another Round” (2020) – assim tratado em nossa crítica. Já Bernadet surge como um franco-atirador, daquele que, no inverno da vida, se permite romper com as convenções. Curioso que parece que estamos diante do mesmo papel vivido por ele em “Nuvem Negra“, curta-metragem que assistimos no 2º FestCiMM – Festival de Cinema do Meio do Mundo. Uma espécie de redenção daquele velho sem voz na mesa do jantar, com a mesma intenção performática.

Essa luta por autonomia e empoderamento, que necessita que os recortes de classe, gênero e raça hegemônicos concedam generosa ou forçadamente a palavra, ganha densidade na segunda metade. O modus operandi de Rewald aqui é bem curioso. Ele se propõe a acompanhar um discurso em uma ocupação feita pelo professor, ativista e político Guilherme Boulos, ao lado de Preta Ferreira (que apresentou “Cidade Pássaro” na Berlinale e é uma das estrelas de “Para Onde Voam as Feiticeiras“, destaques da Mostra SP e do Olhar de Cinema, respectivamente). Sua captação mais jornalística traz um tom diverso de outras obras audiovisuais que usam a luta por moradia como mote (e aqui na Apostila de Cinema tratamos de várias, boa parte compilada em nossa Apostila Mostra Lona). Essa visão talvez um pouco distante sobre manifestações populares no período do vira-voto da eleição presidencial de 2018 engrandece o filme.

“#EAgoraOQue” se afasta de um audiovisual brasileiro usurpador de discurso. Ao mesmo tempo que traz representantes da ala veterana da militância pela arte política entregando suas razões para todo e qualquer movimento de décadas passadas ter ocorrido por um viés bem intencionado. É quase como Petra Costa em sua tentativa de constranger seus iguais em “Democracia em Vertigem” (2019), mas aqui com ficcionalidades que permitem a materialização mais contundente. Ainda tem um Jean-Claude Bernadet que, na brincadeira de ser elite branca, tenta aprender a atirar – entregando a cena mais tocante do filme.

Talvez ampliar o olhar sobre o real empreendedorismo da classe trabalhadora, pinçada pelo autofinanciamento comunitário, fosse um material interessante para um novo filme. Incluindo as intervenções magnéticas de Palomaris Mathias. Ela, ao lado de Valmir, ampliam essa senação de transição geracional, de um novo cinema que se consolida. Tanto falamos aqui sobre a precarização do emprego (“Na Fila do Sus – Episódio 6 – Uberização da Vida” talvez seja o grande exemplo aqui) e a dupla de cineastas capta que essa problematização é das mais urgentes. “#EAgoraOQue” é uma forma pulsante de mostrar que (e aqui me incluo como pessoa) nos reinventarmos, sairmos da frente de batalha e nos apresentarmos como aliados é um caminho para que o levante fascista seja fogo de palha ao sul do Equador.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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