Leia crítica completa de “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime”, novidade da Netflix.
Sinopse: Em um crime que chocou o Brasil, Elize Matsunaga mata e esquarteja o marido. Agora, ela dá sua primeira entrevista nesta série documental que explora o caso.
Direção: Eliza Capai
Título Original: “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime” (2021)
Gênero: Documentário | Crime
Duração: 3h 18min (dividido em quatro episódios)
País: Brasil
Invertendo a Roda que Deslegitima
Atenção: apesar do Caso Elize Matsunaga ser de grande repercussão nos últimos anos e boa parte dos leitores chegue aqui após assistir à minissérie, ressaltamos que o texto crítico que você lerá abaixo contém informações e revelações de todos os episódios e aspectos do caso, caracterizando a presença de spoilers.
A estreia do dia da plataforma de streaming Netflix, que deverá ultrapassar as fronteiras brasileiras, é “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime“, minissérie documental em quatro episódios. Enquanto a mídia vivia a terceira onda envolvendo o assassinato de Marcos Matsunaga, herdeiro da conglomerado Yoki no país, a diretora Eliza Capai (do ótimo “Espero tua Re(Volta)“, de 2019), acompanhava os primeiros passos fora do cárcere da protagonista, na saída temporária do ano de 2019. E, com a consultoria de roteiro escritora e pesquisadora Ilana Casoy e uma equipe de profissionais de várias áreas, traz as particularidades do caso.
Além da natural dificuldade de dar conta de uma obra de mais de três horas de duração de edição desafiadora, a complexidade envolvendo os olhares sobre o ocorrido pode gerar certa dúvida sobre a valoração do seriado. Apesar da Apostila de Cinema ser contra este tipo de juízo como premissa, pontuar algumas opiniões apenas ao longo da crítica podem tornar nebulosas algumas ideias. Por isso, talvez seja melhor deixar a cronologia de lado na parte inicial e ser mais direto nos pontos a serem ressaltados.
Começamos pela sensação final. Antes de refletir a ideia de humanizar Elize (que mais adiante veremos que foi tática da defesa em dois momentos do processo criminal), vale mencionar que o documentário – fugindo de maneira frontal do sensacionalismo dos programas policialescos da TV – não deixa de ter um vínculo jornalístico em sua última ponta. Enquanto o audiovisual brasileiro ainda encontra resistências ao tratar de crimes reais, até mesmo na ficção (veja a comoção na estreia, que segue adiada, das duas versões sobre o Caso Richtoffen), atrair um fato de grande interesse público e muito recente estreita a relação entre abordagem narrativa e linha editorial.
Dito isto, vale mencionar que um eventual processo na Vara de Família que rediscute o poder familiar de Elize Matsunaga ainda não sofreu a ação do tempo. Enquanto personagem, fica clara sua necessidade de afirmar o desejo do reencontro com a filha, na tentativa de criar laços afetivos. Isso torna a série, também, uma peça de um quebra-cabeça de um caso em aberto – assim como são as reportagens da época quando crimes notórios chega ao banco dos réus. Mesmo que não seja o objetivo de Capai e sua equipe, isso torna “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime” mais perto do jornalismo.
Só que a produção não é apenas isso. Talvez a grande marca nas representações aqui seja a inclusão dos vácuos narrativos com elementos ficcionalizados. Apesar de ser uma técnica consolidado nos documentários, a montagem de Daniel Grinspum adiciona uma outra via de imagens, de uma Elize refragilizada na busca por ressocialização, uma figura quase em contemplação. Esta é a grande mola propulsora da humanização da protagonista – e o terreno mais arenoso pelo qual a obra passará. Evitando o juízo valorativo, como já mencionamos, trazer esses dois elementos de plano torna mais nítida a ideia de que não nos vinculamos emocionalmente com a pretensão humanizante a ponto de nos afastarmos da outra leitura – mesmo que reconheçamos que o caso aqui abordado reflete os erros estruturais do sistema punitivista brasileiro.
Não é simples ponderar tais valores e a mídia hegemônica, cada vez mais afundada em um ciclo de entregar ao consumidor o que ele deseja ter, parece contribuir negativamente para os debates na sociedade. A maior qualidade de “Eliza Matsunaga: Era uma Vez em Crime” é assumir desde o início que as leituras que a opinião pública faze de casos como esse são as reproduções do pensamento comum em curso. Uma forma de comunicação que se diz Jornalismo, mas deixou de ser há décadas, se alimenta e nos alimenta de narrativas que nunca são questionadas – ou disputadas. E a disputa de narrativas, aqui, é uma premissa valorizada pela realizadora.
Quando mencionamos a terceira onda midiática, vale mencionar as outras duas. A primeira é quando o crime ocorre e se inicia a busca por culpados. A segunda é o julgamento em si, onde aquela história renasce e condensa as descobertas de acusação e defesa, os testemunhos e as táticas abordadas. Para o espectador deste tipo de programa, o final feliz é a condenação – o que garante a terceira temporada, quando o condenado inicia sua trajetória fora do sistema prisional. Falamos bastante do punitivismo em nossas críticas recentes de “Justiça” (2004) e “Juízo” (2007), filmes de Maria Augusta Ramos que traz um ótimo complemento para a série e também estão disponíveis na Netflix.
Sob essa abordagem, que mistura sangue e circo (e discursos de ódio, vide a atual campanha por desmonetizar um desses programas, o de Sikêra Jr.), criou-se uma ideia de que não se deve dar voz aos acusados – e muito menos aos culpados. Portanto, é um choque para o público assistir, ainda mais fora deste ambiente que a linguagem policialesca impôs, alguém como Elize. Capai, então, encontra a melhor forma possível de criar este ambiente. Inicia com o rosto da protagonista no episódio um, constrangedoramente informando que seu estado civil é viúva.
Ouvirá, no primeiro momento, os advogados e jornalistas vinculados ao caso, com especial participação de Thaís Nunes – que assim como o saudoso Aloy Jupiara no documentário “Doutor Castor” (2021), fica responsável por aplicar uma ótica crítica e uma visão panorâmica do caso e suas implicações e reflexos na (e da) sociedade. Já a família Matsunaga contratou o renomado Luiz Flávio D’Urso, além de Patricia Kaddissi, para defender seus interesses – a escolha de juristas que atraem outras reflexões bem perto do fim. Juliana e Luciana Santoro atuaram na defesa da acusada e também estão presentes.
Há um expediente um pouco incômodo no primeiro episódio. Evitando que se estabeleça uma relação de testemunhos em sequências, as tais “cabeças falantes”, a montagem de Grinspum faz algo ilustrativo, de compor as falas com representações de coisas e lugares um pouco atravessada. Algo que o material de arquivo dá conta no restante da série. Ao invés de explorar a motivação do crime em um momento específico, a diretora vai espalhar ao longo de toda a minissérie. Neste início, a traição que perdurou mesmo com o nascimento da filha, o relacionamento abusivo e o iminente risco de uma internação psiquiátrica são as alegações.
Até o episódio dois revelar o grande acerto de “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime“. Não teremos uma cronologia perpassando sua narrativa. Capai e Grinspum não constroem um mapa e sim um labirinto – e cabe ao espectador saber quais passagens dele se mostrarão relevantes para o seu entendimento. Ao refazer os passos das descobertas do inquérito, do Ministério Público e da defesa, a produção consegue transpor parte da sensação pulverizada ao longo dos anos pelos jornais em algo sintético. José Carlos Cosenzo, por exemplo, promotor do caso, é apresentado como uma pessoa também midiática – que baseia seu trabalho no conflito. Em certo ponto, faz todo o sentido que, apenas após a sua chegada, as condições sobre a confissão de Elize ganhe forma. Na primeira tentativa de deslegitimar a acusada, ele vende a ideia de que ela possuía uma vida de princesa, atraindo a motivação meramente econômica.
A série, então, nos traz a grande questão a ser extraída do caso. Até que ponto a inversão da roda da deslegitimação faz sentido em um assassinato cuja autora esquarteja a vítima, a coloca em uma mala e distribui suas partes pelo meio do mata? Tratar o machismo e as consequências de uma sociedade misógina se ergue como o desafio que Eliza Capai, com a contribuição da jornalista Thaís Nunes e da advogada Juliana Santoro, precisa dar conta. Dizer que essa pretensão foi alcançada soa impossível, visto que o grau de profundidade de nossos conceitos e preconceitos, tolerâncias e intolerâncias, possuem variáveis infinitas. A leitura de uma obra como esta é profundamente pessoal e explorá-la tira a força do produto, trazendo um protagonismo na crítica que não cabe.
Ao chegarmos no episódio três de “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime”, os aspectos envolvendo a análise legista iniciada no fim do capítulo anterior ganham um pouco mais de destaque. O caso entra na análise da existência da premeditação, criando uma nova aba – bem curiosa – nesta navegação. Quase como reproduzindo narrativas aterrorizantes, o casal Matsunaga parece um pouco mais com a clássica burguesia excêntrica e sua obsessão pela caça e o sofrimento animal – e um amor pelas armas como símbolo de autonomia e segurança capaz de eleger Presidentes da República. A produção se sai bem do risco de tornar um pouco mais alegórica e predatória na exploração das imagens que envolvem vídeos caseiros e o arsenal de guerra mantido por Marcos. Inclusive, a trilha sonora – que usa como base “Für Elise“, de Beethoven, é usada de forma bastante comedida, garantindo uma abordagem mais direta e menos virtuosa ao documentário.
Isso torna esse aspecto da personalidade do comportamento dos dois apenas mais um, como deve ser. Se no episódio dois a revelação do passado como prostituta de Elize dá contornos diferentes à leitura da sociedade ao crime, chegamos ao fim do penúltimo capítulo com a segunda chance da defesa inverter a roda da deslegitimação: criar uma repulsa sobre a imagem de Marcos, assim como os acusadores fazem quando a vítima é mulher – e assim como a Promotoria e os advogados assistentes de acusação fizeram de forma extraordinário com a acusada, uma mulher.
Porém, essa construção depende que o outro lado, em contrapartida, se humanize. É assim que o episódio quatro, na iminência da fixação da pena (de uma condenação certa, por se tratar de uma ré confessa), nos leva às origens de Elize. Desviando da romantização, trata do histórico de abuso sofrido na infância e juventude, o que a motivou a sair do interior do Paraná, em Chopinzinho, para se estabelecer em São Paulo. Reencontrando com a ponta inicial da trama, a série está pronta para se tornar um material que aborda as complexas questões, sem o sensacionalismo dos programas que entulham a televisão com a intenção de forjar um pensamento punitivista na sociedade.
Entendendo que chegou a este ideal, a minissérie encontra tempo para se debruçar em visões macro sobre o assunto. Não apenas da cobertura midiática, mas do que há por trás da pena. Luiz Flávio D’Urso, então, mostra que não está ali à toa quando inicia sua fala no capítulo final com um “nada justifica o homicídio“. Ao refletir sobre o aspecto econômico que, alinhado ao pensamento catolicista, fez parte dos sistemas legislativos abandonarem a pena de morte por prisão aliada ao trabalho, ele inaugura um novo capítulo na discussão. Assim como Thaís Nunes e Luciano Santoro, questionando e propondo novos recortes de classe e raça para autor e vítima e as implicações nas conclusões que as pessoas têm do caso.
Portanto, por mais que a linha editorial e as representações inaugurem esse texto com parte das críticas que podem surgir sobre a obra, “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime” é o resultado de uma abordagem corajosa sobre uma complexidade que ultrapassa seu objeto – e também não deve ser deslegitimada.
Veja o Trailer:
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Ficha Técnica de “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime”
Episódio 1: Estado Civil: Viúva (49min)
Sinopse: Em liberdade privisório, Elize fala sobre o relacionamento complicado com Marcos, e pessoas próximas relatam as repercussões do crime.
Episódio 2: Uma Vida de Princesa (52min)
Sinopse: Será que foi um assassinato premeditado? Elize fala sobre as acusações da promotoria e análise minuciosa do motiva e da confissão do crime.
Episódio 3: A Infeliz Ideia de Elize (49min)
Sinopse: Elize conta o que estava pensando quando decidiu esquartejar o corpo de Marcos, e seu advogado explica a estratégia usada para influenciar a opinião pública.
Episódio 4: Os Ecos do Crime (48min)
Sinopse: Elize fala sobre as dificuldades da infância e se lembra do último dia de julgamento, quando o juiz decretou uma sentença surpreendente.