Nova Ordem

Nova Ordem Michel Franco Crítica Filme Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020Sinopse: Enquanto a Cidade do México ferve com protestos, em um bairro chique, um casamento luxuoso da elite mexicana dá errado. Uma revolta inesperada abre caminho para um violento golpe de Estado. Visto pelos olhos de Marianne, a jovem e simpática noiva, e dos criados que trabalham para —(e contra) sua família rica, o filme mostra o colapso de um sistema político, enquanto ele é substituído por algo ainda mais angustiante. Nessa nova ordem, tanto ricos quanto pobres são aprisionados por uma lógica militar, onde os mais ricos financiam involuntariamente sua própria perda de poder.
Direção: Michel Franco
Título Original: Nuevo Orden | New Order (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 28min
País: México | França

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Contra Tudo Isso que Está Aí

Quando uma obra provoca uma comoção que ultrapassa as fronteiras nas quais o mercado audiovisual insiste em criar, é comum que outros filmes venham a reboque – mesmo que não tenham sido feitos para ser. “Nova Ordem“, de Michel Franco, filme de abertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, venceu dois prêmios muito significativos no Festival de Veneza deste ano. O Leão de Prata – ou Prêmio Especial do Júri, o que o fez apenas um degrau abaixo do grande ganhador, “Nomadland“, de Chloé Zhao; e o Leoncino d’Oro Agiscuola Award, que nada mais é do que um troféu em que os votantes são jovens entre 18 e 20 anos de idade, uma leitura sempre importante em festivais desta natureza.

Com muito medo de cair ao reducionismo barato, mas tudo o que permeia o instigante ato inicial do longa-metragem nos leva a lembrar de “Parasita” (2019), dirigido por Bong Joon-ho e alçado a clássico instantâneo no ano passado. A produção mexicana (em parceria com a França), entretanto, quer esticar ainda mais a corda da tensão entre classes, em uma sociedade muito mais efervescente do que a sul-coreana. No documentário “Silêncio de Rádio” (2019) ficamos conhecendo um pouco mais das manifestações e anseios do povo do país – e é nessa lógica que Franco constrói um filme totalmente desapegado de moral e ultraviolento.

Assistir a “Nova Ordem” é, sem dúvida, uma experiência incrível. Usando a acepção da palavra, já que se trata de um longa-metragem capaz de romper com uma lógica ou comunhão interpretativa do público. Há quem veja na narrativa uma abordagem que foge de escopo ideológico e apresente um grupo de insurgentes que, ao encontrar um alvo para suas revoltas (a burguesia) perde totalmente o controle. Isso torna o sentimento sobre a obra mais próximo da admiração ou do afastamento? Cabe a cada um fazer o seu juízo.

Como linguagem, Michel não traz tantos elementos enriquecedores ao filme. Se vale da provocação natural de uma trama que te deixa entre o suspense e o choque com as mortes em profusão do primeiro ponto de virada. No prólogo, o longa-metragem nos apresenta um casal de idosos (Rolando e Elisa, ele interpretado por Eligio Meléndez) na Cidade do México. Ela precisa com urgência fazer um procedimento cirúrgico que coloque uma válvula para bombear sangue no coração. Diante de uma manifestação popular que as autoridades não conseguem conduzir, resultando em uma grande quantidade de feridos, o hospital público desaloja a senhora, que volta para a casa e precisa de dinheiro para fazer a operação em uma instituição privada. Mais um roteiro, por sinal, que faz de mote o debate cada vez mais urgente da valorização da saúde universal. Quem acha que esse questão é local, pela força que sempre teve no Brasil com a relevância do SUS, já encontra reverberação em outros pontos do mundo (vale lembrar que o assunto é abordado superficialmente no chinês “Apenas Mortais“, também selecionado para a Mostra SP).

Rolando então precisa de duzentos mil pesos e vai à casa de seus ex-patrões, no dia em que a filha deles promove seu luxuoso casamento. Parecia que a cumplicidade forçada pela tendência de ser parte daquela montanha de dinheiro algo sujo faria “Nova Ordem” seguir um caminho parecido com o do primeiro ato do brasileiro “Três Verões“, de Sandra Kogut. Aqui, não. Os representantes daquela família querem se livrar o mais rápido possível do homem que dedicou anos para lhe servir no momento mais grave de sua vida. O que parecia que nos levaria a um realismo fantástico, a um toque distópico com a água verde saindo das tubulações, é uma trama totalmente mundana, por mais que soe absurda. Por sinal, bem menos do que “Parasita”.

O grande apontamento a ser feito à produção é essa escolha de condução. O julgamento moral de uma obra não deve caber a uma análise individual, mas em produtos assim ele certamente existe e possui peso relevante. A ideia de um “genocídio rico” proposta por Michel Franco vai nos envolvendo mesmo que com uma técnica bastante tradicional. Marian (Naian González Norvind), a noiva milionária, é a única que se sensibiliza – ao lado de Cristian (Fernando Cuautle) jovem funcionário da casa da família. O auge da construção narrativa do filme é a confusão que nos provoca sobre o funcionamento das instituições. Por um fragmento da obra, o cineasta nos faz crer que saques, sequestros e mortes que lhe seguem tem um viés paraestatal bem mais organizado que na verdade é.

Quando chegamos no momento em que essa inquietação se desfaz, “Nova Ordem” vai se tornando mais formulaico, travestindo sua ousadia em um discurso imagético verborrágico que muitos entenderão como injustificável. Ao contrário do filme vencedor do Oscar deste ano, não há uma reconfiguração das dinâmicas de opressão bem configurada. Até mesmo o debate sobre a insurgência na narrativa de “Bacurau” (2019) não cabe aqui. Uma crítica que não deve ter essa produção nacional, a qual a Apostila de Cinema não teve oportunidade de manifestar, é a ausência de motivação. Esse elemento não é fundamental na constituição de um filme, mas não deixa de ser peça-chave para sua leitura. Portanto, a proporcionalidade dos atos sendo incompreensível, a forma como Michel Franco as representa seria baseada por nós em pouca substância.

Funciona, entretanto, como uma viagem caótica. Se torna maniqueísta por ausência de outra forma de condução, mas essa é uma encruzilhada criada pelo próprio diretor. Acaba sendo mais proveitoso para a classe inicialmente atacada em seu início do que para os aparente oprimidos, já que cria uma falsa impressão de igualdade. Somente quem vive em um conto de fadas condominial acata a ideia de milicianos puramente do mal, enquanto todos que sofrem parecem se encaixar em um conceito inatingível de inocência.

Envelhecendo antes de existir, soa como um mundo que não existe no nosso 2020, esse real, em que o valor que damos à vida é quase nulo. Interprete, então, toda aquela violência contraposta pelos mocinhos com a busca incessante por cumprir as exigências do poder paralelo como uma ironia. Conclua que “Nova Ordem” pode ser entendido como mais uma obra-prima. Ou, talvez, essa afirmação seja tão debochada quanto o filme parece ser. Vai “contra tudo isso que está aí, tá ok?”. Mas: isso o que?

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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