Vai Dar Nada, produção brasileira original do Paramount+, estreou. Leia a crítica!
Sinopse: O filme conta a história de Kelson, um ladrão jovem de carros e motos, que usa a sua motocicleta para escapar da polícia e para conquistar seu o amor de sua vida.
Direção: Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo
Título Original: Vai Dar Nada (2022)
Gênero: Comédia
Duração: 1h 39min
País: Brasil
De Casa Nova
O primeiro longa-metragem original do Paramount+ no Brasil, “Vai Dar Nada”, que estreou ontem, aposta em velhos conhecidos de alguns dos bem-sucedidos sucessos de público da Era da Retomada, em uma comédia que faz frente aos seus melhores trabalhos. Valendo-se dos trinta anos de ótimos projetos vinculados à Casa de Cinema de Porto Alegre, o filme traz a direção Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo e o roteiro do primeiro ao lado de Guel Arraes.
Antes de tratar da obra em si, vale a pena refletir sobre essa movimentação de um player que chegou ao mercado com aparente desvantagem na briga de foice que reúne Netflix (consolidada no mercado a partir de seu pioneirismo), Disney e Warner (que com Disney+, Star+ e HBO Max conseguiram reunir clássicos e marcas de apelo, além de trazer transmissões esportivas fortes a baixo custo na comparação com operadoras de TV paga) e a Globo (com décadas de patrimônio dentro da cultura popular do Brasil).
Foi justamente nessa última que as carreiras dos envolvidos acabaram se consolidando, após a gênese nos cinemas. Arraes concluiu sua primeira década de serviços prestados para a Platinada com o arrasa-quarteirões (nas telinhas e na telona) “O Auto da Compadecida” (1999). Virou parceiro de Furtado em filmes como “Meu Tio Matou um Cara” (2004) e transpôs para a sala escura um fenômeno de audiência duradoura em “A Grande Família: O Filme” (2007). Se tornou um nome de confiança para o espectador, colacionou para si uma credibilidade que nos remete às boas comédias nas últimas décadas.
Para além dos diversos curtas-metragens dos anos 1980, que fez sua carreira se vincular ao inoxidável “Ilha das Flores” (1989), a dupla função que Jorge cumpre em “Vai Dar Nada” não é novidade. “O Homem que Copiava” (2003) e “Saneamento Básico, o Filme” (2007) são outros exemplares da prolífica carreira do realizador. Já Ana Luiza Azevedo nos tem mostrado uma filmografia mais adocicada, fugindo do saudosismo frio e referencial que virou mote no audiovisual contemporâneo. Falamos um pouco disso quando percorremos seus trabalhos nos textos sobre “Antes que o Mundo Acabe” (2009), o telefilme “Doce de Mãe” (2012) e um dos filmes mais bonitos do Cinema Brasileiro nos últimos anos, “Aos Olhos de Ernesto” (2019).
Em comum, criadores que se valem de camadas populares não apenas como público-alvo, mas na posição de protagonistas. Podemos dizer que esse trio tem como grande qualidade o poder de serem estratificadores sociais – sendo todo o restante, consequência de suas leituras. Talvez por isso, vejamos em “Vai Dar Nada”, por exemplo, um trabalho de comédia de Rafael Infante bem menos exagerado do que geralmente é. Mesmo assim, a condução de Furtado e Azevedo não exclui de plano essa característica do ator, que não perde seu trunfo no humor. Algo que Katiuscia Canoro já nos permitiu ver em outros trabalhos.
Os dois são uma grande contribuição enquanto satélites do protagonista Kelson (Cauê Campos). Ele é um jovem que lida com a ausência de perspectiva praticando roubos sob encomenda. Fernando (Infante) é um desmontador de veículos de talento, enquanto que sua companheira Suzy (Canoro) é uma policial que “complementa” renda sendo parte do esquema de atravessamento dos carros. Age em benefício próprio em um sistema tão corrompido que não consegue identificar seus erros. Ao mesmo tempo, não exige procedimentos inovadores.
Boa parte das motivações e formas de agir desse trio é livremente inspirado na extensa pesquisa de Carolina Christoph Grillo em sua tese de Doutorado “Coisas da Vida no Crime”, publicada em 2013 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Esse modus operandi e os impactos culturais nas relações sociais nas áreas mais carentes da cidade recebem a adição do tempero da comédia situacional de Furtado e Arraes.
O desenvolvimento da trama ganha uma cadência diferente no segundo terço. O leque de personagens nos chega de forma mais frenética no ato inaugural, em um dinamismo que remonta aos grandes filmes já citados neste texto. Parece haver uma preocupação de segmentar a narrativa para que cada agente da história seja lido em sua complexidade. A experiência dos realizadores permite que o objetivo seja alcançado sem precisar se socorrer no humor físico ou nos exageros que em nada combinariam com a unidade e a proposta do filme.
Flertando com o didatismo, temos a forma como a irmã de Kelson, interpretada por Jéssica Barbosa, e sua chefe no escritório de advocacia tentam enquadrar várias atitudes sob o manto do Direito. Isso acaba gerando um dos grandes acertos de “Vai Dar Nada” enquanto mensagem. O que poderia descambar para uma relação de causa e efeito simplista sob a ideia de que vivemos em uma sociedade marcada pela impunidade, ultrapassa esse generalismo.
O que faz com que boa parte dos personagens errem não é nenhum espírito de vilania ou algo do tipo. O desconhecimento acerca de seus direitos e obrigações é fundamental para que eles ajam ou sigam por caminhos condenáveis. A obra, então, parece mais disposta a clarificar do que a punir, uma ideia interessante e coerente com os trabalhos de seus criadores, mas que pode frustrar alguns.
Se pensarmos na forma como somos levados a relativizar burocracias, deixar de ler os contratos que assinamos e legitimar nossas relações familiares, há aspectos que superam a divertida comédia a serem tratados. Tudo isso com linguagem e estética consagrada (e já clássica) de nomes de peso no audiovisual brasileiro, em roupagem moderna, pelo rap contemporâneo reflexivo ou engraçado que percorre a trama. A motivação da impunidade, em tempos do audiovisual selvagem dos streamings, pode ser motivado mais pelo desejo menos nobre de criar continuações para a história.
“Vai Dar Nada” inaugura um novo setor de um player que chega ao mercado consciente de que se valer de uma tradição pode ser uma grande porta de entrada para o mais novo sucesso (de todos os tempos, da última semana).
Veja o Trailer: